Jornalismo de esclarecer não embarca docilmente no moralismo possidónio

OSCAR MASCARENHAS DN 25 outubro 2014

Possidónio, dizem os mais conceituados dicionaristas, é "político ingénuo e sertanejo que vê a salvação da pátria no corte radical das despesas públicas". Na edição de dia 16, o DN decaiu num possidonismo miserabilista e revelou uma sensibilidade de pedra da calçada.
A princípio, nem me apercebi, lendo o título: "É a Marinha que vai deitar as cinzas de Alpoim Calvão ao mar." Naquela leitura das "gordas" só me ocorreu estar perante uma não notícia: a Marinha vai deitar as cinzas de um marinheiro ao mar. Se não, quem é que havia de ser? A Força Aérea? A Guarda Florestal?
Numa releitura mais atenta, dei com um pós-título já controverso: "Duas semanas após a morte do comandante Alpoim Calvão, a Marinha embarca hoje familiares, amigos e jornalistas na fragata para realizar cerimónia do foro privado."
O início do texto era ainda mais vigoroso no tom crítico e sem contraditório: "Sendo essa uma cerimónia de natureza privada e que corresponde a um desejo expresso por Alpoim Calvão, diversas fontes ouvidas pelo DN manifestaram ontem estranheza e indignação com o que consideram ser mais um exemplo de uso indevido dos dinheiros públicos (independentemente de o custo ser maior que o cobrado por agências funerárias ou de aluguer de embarcações marítimas ou turísticas)."
Além de o texto entre parênteses ser literalmente incompreensível, "diversas fontes" não identificadas comunicavam ao DN a substância do seu comentário: "Uso indevido de dinheiros públicos." A reprodução de opiniões de pessoas não identificadas é interdito pelo Código Deontológico do Jornalista e o autor da notícia já anteriormente foi chamado à atenção nesta coluna para a incorreção do procedimento.
Desta vez, utilizou o patusco expediente de colocar os comentários sob a forma de perguntas que escondem tanto as certezas e convicções de quem as formula como a cauda a abanar de um gato debaixo do sofá.
A própria sintaxe das "perguntas" é digna de figurar num manual do jornalismo matreiro: parte da pergunta é colocada entre aspas e o resto não, numa salada de discursos ipsis verbis e "condensações interpretativas" do jornalista. Uma festa! "Eis algumas interrogações colocadas ontem por fontes, militares e civis, ouvidas pelo DN sob anonimato para falarem à vontade sobre um assunto com algum melindre: "Esta missão integra a defesa militar" do país? Há provisão orçamental para "essas despesas"? Foi pedida "autorização ao chefe do EMGFA"? Porque é que "tenho de pagar" a cerimónia? A Marinha faz "o mesmo" com outro cidadão?"
Sei que, em certas circunstâncias-limite, o jornalista poderá ter de recorrer à proteção de fontes, acolhendo-lhes comentários, desde que o faça num contexto de recolha de informação factual, o comentário aponte para a factualidade fornecida e que o jornalista tenha a convicção de que está a consumir uma fatia da sua credibilidade.
Não é, manifestamente, o caso: estes são comentários que não precisavam de ser transcritos, o jornalista poderia fazer exatamente aquelas perguntas se as achasse pertinentes. A via que escolheu foi fazer-se de Pilatos revendedor de peixe "ao preço por que o comprou" e com a bacia esburacada pela ferrugem.
Vários militares (identificados) escreveram-me a significar a sua indignação contra o artigo. A tónica dos protestos apontava para uma desconsideração, por parte do jornalista, em relação à figura de Alpoim Calvão, e que seria essa a motivação da notícia que ocupou quatro colunas de alto a baixo a propósito de a Marinha oferecer o transporte para o lançamento das cinzas ao mar.
Estaria disposto a discordar dessas opiniões, tendo em atenção o rigor e o distanciamento com que o jornalista escreveu o obituário do comandante Alpoim Calvão. No entanto, a revelação, pelo próprio jornalista, na edição online daquele dia 16, de uma pergunta que enviou aos responsáveis da Marinha obriga--me a nutrir dúvidas sobre o distanciamento: "Entre outras questões, o DN perguntou se a Marinha pode - e com que base legal - considerar-se competente para dizer quem é "herói nacional" e para decidir que homenagens lhe presta e em que termos, para além dos legalmente determinados."
O comandante Alpoim Calvão foi condecorado com a Torre e Espada com Palma, ou seja, com a mais alta condecoração, sendo assinalados, pela palma, feitos de bravura em combate. Não creio que caiba alguma discussão sobre se a Marinha tem de perguntar seja a quem for se Alpoim Calvão é ou não herói nacional. É. Pessoalmente, prefiro outros heroísmos: o homem que morre na cruz por um ideal, o resistente que aguenta a tortura sem denunciar companheiros e sofre anos sem fim de prisão e isolamento sem vontade de se pagar na mesma moeda quando a situação se inverter. Para mim, são heróis cuja dimensão transcende fronteiras nacionais. Mas não nego valor nem homenagem a outros tipos de heroísmo.
Sobre as homenagens a prestar - e este é o busílis da notícia - considero inconcebível que o DN tivesse dado tanto relevo. A notícia conclui com este mimo: "Quando uma das questões mais discutidas dos últimos tempos tem sido o uso dado aos dinheiros dos contribuintes, desde logo se também vão pagar o buraco do BES (...) Por comparação, uma conhecida agência funerária cobraria "290 euros mais IVA" - quase 360 euros - por realizar uma cerimónia semelhante em Lisboa, disponibilizando um veleiro com capacidade de levar seis acompanha-ntes que partisse de Alcântara e para lançar as cinzas ao mar na zona do Bugio-Paço d"Arcos."
Duzentos e noventa euros mais IVA! Mais barato seria mandar do Alfeite dois grumetes num bote a remos despejar as cinzas no Mar da Palha. Isso é que era homenagem catita! Agora usar a boleia de um navio que sai em missão de rotina, efetuar uma breve cerimónia na barra do Tejo e trazer de volta os familiares e acompanhantes - ai, ai, onde vamos parar com tanta sumptuosidade? E o buraco do BES, como é que fica?
O DN quer esclarecer os leitores ou intoxicá-los com este moralismo possidónio? Fique claro que não tenho nem nunca tive qualquer espécie de simpatia, nem sequer contacto com o comandante Alpoim Calvão. Mas simpatizo e luto por um jornalismo de causas que valem a pena e não se consuma em coisas mínimas.

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