Exterminador implacável
JOÃO CÉSAR DAS NEVES | DN 2014.10.29
A humanidade enfrenta uma terrível doença, endémica e mortal. Felizmente surgiu agora no mercado um poderoso medicamento que, se usado com regularidade, garante não a cura, mas importantes melhorias. A maleita é muito pior do que o ébola, o cancro ou diarreia: orgulho.
Todos sabemos como na vida pessoal, profissional, política e diplomática a soberba gera zangas, conflitos e angústias. Por vezes os sintomas são evidentes, mas apenas aos circuns-tantes, pois quanto mais alguém está infectado, mais cego fica ao seu mal. É óbvia para todos a arrogância de Angela Merkel, Ricardo Salgado, da sogra metediça ou do chefe incompetente. Para todos, menos para o próprio, que se considera sempre razoável e injustiçado. Tal como os críticos de Merkel e Salgado, genros e subordinados que, julgando-se justificados pelos defeitos que criticam, são tanto ou mais presunçosos ao fazê-lo. O amor-próprio está sempre presente, mesmo se escondido como raiz venenosa. A maleita é de tal modo virulenta, que chega a infectar através da própria vacina: muitos somos orgulhosos da falta de orgulho, gabando-nos da nossa enorme humildade.
Há milénios a sabedoria identificou a sobranceria como o pior dos pecados, fonte de todos os outros. Na tradição cristã, por exemplo, é este o pecado de Satanás e também de Adão e Eva. São Tomás de Aquino explica: "A soberba encerra a gravidade máxima, pois nos outros pecados o homem afasta-se de Deus por ignorância, fraqueza ou busca de outro bem, enquanto a soberba se afasta de Deus precisamente por não se querer submeter a Ele e à sua lei (...) Segue-se que a soberba é, em si mesma, o mais grave dos pecados, enquanto a todos supera pela aversão, elemento formal do pecado" (Summa Theologiae II-II 162, 6).
Ligado ao pecado original, todos os seres humanos estão contagiados pelo vírus, recebendo-o no sangue. E, como a diabetes ou a malária, a soberba nunca é totalmente debelada, mantendo-se latente para sempre no quotidiano dos infectados: a única alternativa é ir gerindo o mal com fármacos. Como o quinino na malária ou a insulina na diabetes, apenas uma droga pode controlar o orgulho: humildade. Consequentemente, apenas para ir sobrevivendo, toda a gente precisa de doses contínuas e regulares de humildade. E até nos casos raríssimos que a medicina declarou curados, o tratamento deixa múltiplas sequelas, como vaidades, pedantismos e outras síndromes menores e anexas.
As terapêuticas disponíveis são múltiplas e eficazes e o mercado português está razoavelmente bem fornecido, até porque poucos doentes chegam à consulta. Apesar disso, até há poucas semanas era impossível aceder a um dos medicamentos mais famosos e potentes contra o orgulho. A falha foi finalmente colmatada, embora de maneira surpreendente, pois o princípio activo aparece não nas formas habituais de xarope, comprimido ou vaporizador, mas em pastilhas; e estas, em vez de virem nas embalagens comuns, estão dispensadas nas páginas de um livro. Felizmente a bizarria não afecta a eficácia. A Prática da Humildade (Paulus) foi escrito há cerca de 150 anos por Vincenzo--Cioacchino Pecci. A referida raridade do produto no circuito comercial explica-se, em parte, por o seu humilde autor ser mais conhecido como Papa do que como químico farmacêutico.
Os 25 anos do pontificado de Leão XIII - o quarto mais longo da história a seguir aos de São Pedro, do imediato antecessor de Leão, o beato Pio IX, e de São João Paulo II - foram marcados por inúmeros percalços e grandes obras doutrinais e pastorais, como as encíclicas Aeterni Patris (1879) sobre a filosofia cristã e Rerum Novarum (1891) que lançou a doutrina social da Igreja. Humildemente enterrado debaixo dessas maravilhas ficou este livrinho, obra de juventude do então ainda bispo de Perugia. O único propósito do volume é combater o terrível e peganhento muco da soberba, que nunca nos deixa descansados. Fá-lo da única forma eficaz, humildemente em 60 doses individuais.
O inconveniente de usar livro em vez de caixa é a falta do folheto informativo que sempre acompanha os remédios. Assim, os leitores desconhecem a posologia. Após árdua investigação, de que se orgulharia se o tema fosse outro, o DN está em condições de indicar uma possibilidade com resultados comprovados. A título preventivo, duas pastilhas por dia, de manhã e ao deitar; nos casos agudos, uma de seis em seis horas durante uma semana, consultando um especialista na falta de melhoras; esta é também a modalidade de uso permanente nos doentes crónicos.
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