Ver a parede que temos pela frente
José Manuel Fernandes
OBSERVADOR 13/10/2014
OBSERVADOR 13/10/2014
Se houvesse crescimento, não havia austeridade. Em parte é verdade. Só que a falta de crescimento, em Portugal e na Europa, não é uma doença passageira. Começa a ser a nossa nova condição normal
1. Um espectro paira sobre a Europa.
(Tinha acabado de escrever esta linha e apercebi-me do lugar comum. Googlei, e lá estava: as palavras com que começa o Manifesto Comunista, escrito há 166 anos por Marx e Engels, são das mais glosadas em crónicas e textos de opinião. Já ninguém acha que esse espectro é o comunismo, mas a força retórica de um dos mais poderosos e influentes panfletos políticos de todos os tempos continua a funcionar como tentação para muitos cronistas. Mesmo assim insisto.)
Um espectro paira sobre a Europa – o da recessão alemã. Ocupou nos últimos dias as capas de jornais como o Financial Times e o Wall Street Journal, fez cair as bolsas no final da semana passada e divide os editorialistas. Com ele vem o medo de ver a Europa mergulhar de novo numa crise de que ainda nem sequer sequer saiu e debate-se se o Banco Central Europeu já fez tudo o que podia fazer para evitar a armadilha da deflação.
Leio, entre muitos outros, Martin Wolf no FT, Ambrose Evans-Pritchard no Telegraph, também o editorial do WSJ e, podendo concordar mais com uns argumentos do que com outros, o que sinto é que existem poucas certezas e muitas dúvidas.
O ponto central do debate é como relançar o crescimento. Dinheiro barato não falta – falta consumo e falta investimento. Para uns, mais reformas amigas do investimento privado é a única forma de conseguir um crescimento saudável (é o ponto de vista com que tendo a concordar). Para outros, não haverá forma de estimular o crescimento se os Estados com alguma folga orçamental não começarem eles a investir para, como dizem os manuais neokeinesianos, fazer crescer "a procura agregada". Como não-economista fico sempre com a sensação de que, a par com a divisão de escolas de pensamento económico, o que dificulta chegar-se a um ponto de entendimento é a dificuldade de compreender o que se está a passar. Por outras palavras: faltam modelos que ajudem a explicar a actual crise e, a seguir, alumiem o caminho.
Estou convencido, pelo que conheço da obra e vida de Keynes, que ele estaria hoje à procura de soluções novas para problemas que são realmente novos. Mais: nestas alturas sinto que quem tem realmente razão é o seu grande rival intelectual, Friedrich Hayek, que exactamente há 40 anos estava por esta altura a ganhar o Nobel da Economia, e que escreveu que "a tarefa curiosa dos economistas é demonstrarem aos homens o pouco que sabem sobre aquilo que eles desejam condicionar", isto é, a própria economia.
2. A economia, como todos sabemos, não é uma ciência exacta. Pelo contrário: tenta encontrar modelos que expliquem, e antecipem, o resultado agregado de milhões de escolhas individuais. Podem ser decisões complexas como as de um grande investidor, mas são também decisões corriqueiras como as que tomamos todos os dias quando decidimos levar farnel ou almoçar num restaurante, ir de carro ou de comboio, trocar de telemóvel ou comprar uns sapatos novos.
Algumas das surpresas da crise que vivemos em Portugal – por exemplo: o desemprego subiu muito mais do que o previsto e, depois, começou a cair muito mais cedo do que o antecipado – derivam de muitas decisões individuais que não seguiram o padrão esperado pelos economistas e, por isso, não encaixaram nos seus modelos. Todos se enganaram, os optimistas e os pessimistas, o que indica que, provavelmente, muitas das nossas escolhas como consumidores e muitas das escolhas dos agentes económicos estão a seguir caminhos diferentes dos que os modelos incorporam.
Isso talvez ajude a encontrar alguns dos motivos da actual dificuldade em relançar o crescimento em todo o mundo desenvolvido, mas sobretudo na Europa. Porque o nosso problema é exactamente esse: tudo indica que estamos a ficar presos numa armadilha de crescimento zero, ou de crescimento muito residual. Para as nossas sociedades isso é uma situação que nunca vivemos, para os sistemas de proteção social que temos isto é uma notícia de consequências apocalípticas.
3. O que é que mudou nas nossas sociedades que pode explicar comportamentos menos amigos do crescimento económico? Muita coisa, mas sinto que o principal factor de mudança é demográfico. Vivemos em sociedades envelhecidas, sendo que algumas delas, como Portugal, a Itália ou a Alemanha, estão especialmente envelhecidas e ainda vão ficar mais envelhecidas nas próximas décadas.
A primeira consequência de termos uma sociedade envelhecida é que temos menos capacidade de inovação, menos gente (proporcionalmente) com vontade de arriscar e correr riscos, menos ideias novas e menos empresas novas. Mas isso já sabíamos, ou já prevíamos. O que julgo estar pouco estudado é a forma como uma sociedade envelhecida, muito dependente de prestações estatais e de serviços públicos, toma os tais milhares de decisões individuais que, agregadas, permitem detectar um comportamento económico.
Uma das crenças dos economistas é que se colocarmos mais dinheiro no bolso das pessoas elas vão consumir mais e isso gerará um efeito positivo de crescimento económico. Numa sociedade menos envelhecida, como eram as nossas sociedades há 10, 20, 50 anos, era isso que sucedia. Será que ainda sucede da mesma forma?
Mas há mais, pois não é apenas o comportamento dos mais velhos que pode estar a mudar, o dos mais novos também estará a ser muito diferente do comportamento típico dos seus pais quando tinham a mesma idade. Basta pensar que estamos num momento novo, um momento de viragem no que toca a expectativas: a minha geração nunca duvidou de que viveria melhor do que a geração dos seus pais; a geração dos meus filhos já descrê dessa perspectiva. O optimismo com que se comprava uma casa com um quarto a mais para o próximo filho, certos de que a promoção e o aumento de ordenado chegariam entretanto, é um optimismo que sinto que desapareceu da geração mais nova, a mais desempregada, a mais mal paga (dizem também que a mais bem formada).
4. Às diferenças demográficas devemos também acrescentar as diferenças culturais. Elas começam a ser muito evidentes na Europa, onde nalguns países o número de emigrantes com tradições sociais e culturais muito diferentes é já significativo. Há um grande debate sobre as condições que, no limite, permitem o crescimento no longo prazo, e autores como Daron Acemoglu e James Robinson defenderam, em livros como "Porque Falham as Nações", a importância das instituições. É uma explicação que sempre me pareceu insuficiente, pois não ajudava a perceber porque algumas sociedades foram capazes de criar as instituições amigas do crescimento e outras não. Sempre me pareceu que devíamos também considerar diferenças culturais, sendo que, na Europa, o fundo cultural está a mudar – devagar, mas está a mudar. Será que isso tem consequências no nosso potencial de crescimento? Deixo apenas a pergunta.
O crescimento futuro vai estar também afectado por um outro factor: o peso das obrigações já assumidas pelos nossos estados sociais. Há encargos escondidos, de que ninguém fala, e que vão pesar muito não apenas nos próximos anos, mas nas próximas décadas. Recentemente ficámos a saber, lendo um relatório do FMI sobre Portugal, que as responsabilidades assumidas pelo Estado com pensões futuras do sector público equivalem a 134% do PIB, isto é, tanto como a actual dívida pública. Esses compromissos (e a dívida, claro está) vão pesar sobre as opções dos governos futuros, colocando uma enorme pressão para subir os impostos. Se isso suceder, o dinheiro que for tirado à economia para assegurar esses compromissos é dinheiro que não será investido para criar riqueza futura. Ou seja, vai ser cada vez mais difícil, e não mais fácil, encontrar recursos suficientes para pagar o Estado Social e, ao mesmo tempo, fomentar o crescimento económico.
É por tudo isto que vejo com enorme cepticismo as receitas "para o crescimento" que passam por mais gasto público, mesmo que esse gasto seja investimento em infraestruturas. O risco real é que produzam pouco crescimento (ou mesmo nenhum crescimento, como sucedeu em Portugal depois da adesão ao euro) e muita dívida. O que me leva a perceber o argumento e a prudência dos alemães, um país onde o problema demográfico é sentido de forma especialmente aguda. Os bons argumentos que tenho lido por estas dias a chamar a atenção para as debilidades do modelo alemão, que está muito dependente das exportações e do crescimento do resto do mundo, não me levam a achar que a Alemanha deve por isso passar a ser mais italiana ou mesmo mais francesa, passando a ter os défices que os seus vizinhos do sul começaram a ter quando as suas economias perderam dinamismo.
5. Vivemos pois tempos de incerteza onde o que mais assusta são os que acreditam ter a varinha mágica do crescimento – os que não vêm a parede que temos pela frente, para recuperar uma expressão de Ricardo Reis. Nem os economistas sabem bem o que se está a passar, nem compreendem ainda porque é que os seus modelos não estão a funcionar. O crescimento não vai voltar por milagre ou "vontade política". Provavelmente nunca voltará com o vigor do passado. Repetir as receitas do passado pode apenas agravar os nossos problemas, como já sucedeu. E isso vai obrigar-nos a pensar o nosso mundo, as nossas sociedades, os seus equilíbrios e o seu contrato de gerações de forma radicalmente diferente. A sério.
PS. Não resisto a um pequeno exercício de memória. Quando andava à procura de quem teria utilizado a expressão com que abro este texto, encontrei esta pequena jóia:
"Há um espectro que paira sobre a Europa. Um espectro que aponta para o fim de um ciclo de austeridade punitiva nos países vulneráveis à dívida, ao défice público e aos ataques dos mercados financeiros. Não chegou através de uma revolução, nem teve como arauto um revolucionário obediente a ideologias radicais. Bastou uma eleição democrática na França e a subida ao poder de um político centrista para que, num ápice, a Europa reflectisse a fundo sobre a sua caminhada para o caos."
Para ficarem situados: o texto foi escrito há quase dois anos e meio, em Maio de 2012, como editorial de um jornal de referência, e o tal político centrista referido era, claro está, Hollande. Nada de surpreendente. Só é surpreendente que hoje se acredite que a eleição de um outro político, desta vez António Costa, vá ter o mesmo efeito mágico, que nunca se materializa, de fazer pairar espectros sobre a Europa…
Comentários