O Grande Inquisidor

Miguel Morgado (comentário aos Irmãos Karamazov)
Facebook, 2014.10.16
O capítulo sobre o Grande Inquisidor nos "Irmãos Karamazov", de Dostoievsky, não se resume. Lê-se e medita-se. Lê-se como um diálogo deve ser lido, respeitando integralmente a sua natureza dialógica, o que é mais fácil dizer do que fazer. Além disso, como aqui sou convidado a abordar sobretudo a perspectiva da liberdade enquanto problema, é preciso lembrar que esta leitura é necessariamente unilateral.
A questão primacial parece ser esta: para quê ser livre num mundo destituído de sentido, cruel e palco de um perpétuo e absurdo sofrimento? Para quê escolher se qualquer escolha se dilui num vórtice de desespero? A liberdade deixa de ser um dom e passa a ser um fardo doloroso. Não é apenas um elemento estranho num mundo desordenado. É pior: ela própria é um princípio de desordem.
A mentira e a ilusão programada ou solicitada parecem ser as únicas justificações para a maldição da liberdade. Para Ivan Karamazov, diante da angústia do seu irmão, o devoto cristão Aliocha, nestes termos, o homem não tem saída. A infelicidade e o sofrimento são o seu destino. Neste triste quadro, a resposta mais óbvia é a aceitabilidade do suicídio. Claro que esta resposta fica reservada para almas como a de Ivan, disponíveis a encarar o problema de frente. Não para o afirmar, é certo, mas para aceitar as suas proporções avassaladoras e agir numa espécie de conformidade. À alma fustigada não é dada a liberdade de recusar a liberdade.
Mas o problema tem uma dimensão colectiva. O que vale por dizer que tem uma dimensão política. Dito de uma forma directa: o suicídio não é resposta que se possa propor aos homens em geral. É com esse problema que o Grande Inquisidor tem de lidar.
O Grande Inquisidor de Sevilha é uma figura criada por Ivan, quando este se inspirou a escrever um poema ou uma alegoria que descrevesse a natureza do problema, e das escolhas que se abrem. É a sua versão do qual seria a reacção terrestre a uma segunda descida de Deus à terra. A proposta de Ivan é na realidade uma resposta à promessa feita por Aliocha em nome de Deus de reconciliação de todo o sofrimento num horizonte de redenção e felicidade eterna. À luz desta promessa alimentada na fé cristã, a ausência de sentido e os mistérios da iniquidade são apenas aparentes. A redenção é a suprema reconciliação de todos os impasses.
O poema de Ivan não é só um testemunho da sua própria incredulidade. Não é só a indisponibilidade interior de aceitar essa promessa que está em causa. É mais do que isso. É a impossibilidade da própria promessa que é denunciada. É o seu carácter radicalmente contraditório que é exposto sem apelo. O ponto de partida é que o sofrimento dos inocentes já não pode ser redimido porque não pode ser anulado. A sua justificação, seja ela qual for, é um ponto de partida que Ivan não aceita. Não aceita pelo simples facto de ter tido lugar.
Mas uma coisa é tentar compreender o desespero de Ivan. Outra coisa é perceber o alcance global da lenda do Grande Inquisidor. Aqui, emerge uma reflexão poderosíssima sobre o exercício do poder como rebelião contra as condições estruturais da existência humana e contra a ordem divina. Para muitos o exercício do poder com essa finalidade foi aclamado como um triunfo da humanidade. Mas para Dostoievsky a conclusão de muitos está longe de ser verdadeira para alguém. O exercício do poder com esse propósito terminará num abismo de vontade de domínio e de recurso ao terror.
É com uma imagem de terror que abre a Lenda do Grande Inquisidor. Em Sevilha, a Inquisição dá largas à sua fúria queimando uma centena de heréticos na fogueira. Um dia depois, Cristo está de novo em carne entre nós. Tudo aquilo fora praticado em seu nome. Era uma contradição demasiado grave e a situação do mundo reclamava o seu regresso. O povo reconhece-o e ele confirma o seu amor pelos homens fazendo milagres e ressuscitando uma menina. O Grande Inquisidor também o reconhece. Manda-o prender, sem que isso cause qualquer comoção numa multidão que momentos antes se rendia aos seus pés. Pela segunda vez na História da Humanidade, o poder apostava em destruir o Deus do amor.
Feito prisioneiro, Cristo recebe a visita do Grande Inquisidor, o qual, ficamos a saber, vivia uma vida sem fé apesar do seu sacerdócio. Cristo é imediatamente condenado à tortura e à execução. Tudo isto nos causa estupefacção. Mas para o Grande Inquisidor a situação é cristalina e ele não quer perder a oportunidade de confrontar o próprio Deus com os defeitos da sua Criação. Quer confrontá-lo com o facto de a Inquisição ser uma grande mentira ao serviço, porém, da vontade humanista de reconstruir a (des)ordem da Criação. É uma grande mentira e um grande terror, como são todos os projectos políticos deste tipo, ao serviço da revolta contra o sofrimento sem culpados e contra um mundo sem sentido.
O Inquisidor acusa o seu prisioneiro de ser um Deus que põe a liberdade dos homens acima de tudo. Que não está disposto a sacrificá-la por nada. E isto apesar de os homens acorrerem a trocá-la por qualquer coisa que ao menos pareça ser ingrediente da felicidade. Deus criou rebeldes e os rebeldes não podem ser felizes. A mentira da Inquisição, o terror da fogueira, estão lá para corresponder à angústia dos homens. E ao seu desejo de comunidade, de uma mentira universal. Viciosos, fracos, temerosos, os homens só são reconduzidos à obediência e a algum tipo de ordem se lhes derem pão e mentiras apaziguadoras provenientes de uma autoridade misteriosa e indiscutível que lhes diga o que devem fazer – e que, portanto, lhes dispense o uso da liberdade.
No final, o Inquisidor, talvez atónito pelo beijo que Cristo lhe dá - a resposta profunda e irrefutável dada por ele a todo aquele libelo acusatório, a toda aquela rebelião e dissidência -, acaba por não o executar. Abre a porta da cela, manda-o embora e ordena-lhe que não volte ao mundo dos mortais. Pela porta saiu também a liberdade, esmagada pela tirania de quem reivindica o direito, e proclama a capacidade, de refazer o mundo e os homens. Aí o terror governará; serão queimados livros e pessoas. Para acabar de vez com as injustiças e o sofrimento e tudo o resto que caiba nesse projecto. A procura de uma outra ordem desenhada dentro das limitações das razões e paixões humanas conduzem a uma desordem profunda e sem remissão. Nem todos os humanismos são humanismos. Alguns acabam a tratar-nos como criancinhas. Outros como escravos.
O humanismo do Grande Inquisidor é o humanismo da rejeição da liberdade e da rejeição de Deus. É o humanismo que se abre quando "tudo é permitido".

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