O futebol

Inês Teotónio Pereira
i-online 2 Nov 2013
Os rapazes que tiverem a sorte de nascer com este gosto, têm a vida bastante facilitada. As opções são claras: onde há uma bola, há divertimento
O primeiro diálogo que um dos meus filhos teve no primeiro dia de aulas do primeiro dia de escola foi assim:
- Jogas futebol?
- Jogo.
- Queres ser meu amigo?
- Quero.
Dois meses depois e ainda me responde que só é amigo dos rapazes da escola que jogam futebol. Os outros, que até podem ser exímios no ténis ou no tiro ao alvo, não existem.
No infantil mundo dos rapazes só há duas espécies, os que jogam futebol e os que não jogam. E existe um Muro de Berlim entre estes dois recreios, onde é impossível passar de um lado para outro. Também não há nada a fazer para mudar o rumo das coisas. Eles nascem assim, é uma questão genética, de ADN. Mesmo aqueles que não têm jeito nenhum para a bola mas nasceram com esta marca jogam futebol - acabam quase sempre na baliza mas jogam futebol. Podem ser gordinhos, desajeitados, lentos, que nada os impede de insistirem em continuar a dar chutos numa bola.
Ora os rapazes que tiverem a sorte de nascer com este gosto têm a vida bastante facilitada. As opções são claras: onde há uma bola, há divertimento, há amigos e há brincadeira. E há sempre uma bola. Eles não imaginam a vida sem uma bola nem sabem o que é ser amigo de alguém que não gosta de bola, que não é simpatizante de um clube ou que não vibra com os grandes dérbis. Acham estranho que se possa ser assim. Desconfiam que alguma coisa não está certa.
Estes meninos fazem a alegria dos pais. O que um pai quer de um filho é que ele jogue bem à bola, tudo o resto é secundário. Os pais, que já foram rapazes, sabem bem qual é a importância da bola para a vida. "Com o que é que ele vai brincar, sobre o que é que ele vai falar com os amigos no escritório se não souber nada de bola? Terá emprego, conseguirá arranjar mulher?" E a expectativa nasce mesmo antes de o bebé nascer: se o filho já dá pontapés dentro da barriga da mãe é porque está para nascer um grande benfiquista, sportinguista ou portista. Temos homem.
Gostar ou não gostar de futebol não é uma coisa relativa e indiferente, é absolutamente determinante. Quem nasce sem qualquer interesse pelo futebol está tramado. Está grandiosamente tramado. É quase como nascer na Alemanha de Leste antes da queda do Muro, um azar dos diabos. Uma criança assim sabe desde muito cedo que vai ter de se esgatanhar para sobreviver à escola, aos recreios, às festas de anos e ao pai. O pai partilha do sentimento fatalista: "Porquê o meu pobre filho?", suspira em profunda tristeza e com algum sentimento de culpa. A mãe simplesmente aviva o seu ódio ao futebol e aconchega a asa sobre o seu menino.
Um rapaz que não joga futebol tem forçosamente de ser fora do normal. O normal é dar chutos numa bola assim como é normal uma criança gostar de gomas e não gostar de espinafres. Por isso, para ser aceite pelos outros, tem de ter outra qualquer característica marcante: tem de ser artista, excelente aluno, cromo em computadores ou o cómico da turma. Mesmo assim, não é certo que tenha uma vida fácil. Não dá para ser apenas "aquele que não joga à bola". Se assim for, está condenado a viver os recreios entre as meninas ou outros cromos que só têm em comum a infelicidade de não jogarem à bola, de nunca terem experimentado jogar ao PES ou ao FIFA e de viverem na santa ignorância de não saberem quem está em primeiro lugar na Liga, o que é uma jornada ou de que país é o Chelsea. Nem na Alemanha de Leste a vida era tão deprimente. O mundo destes rapazes não é redondo, é uma chatice. E só alivia quando chegarem todos à idade em que o mundo deixa de se dividir entre futebol e futebol e passa a dividir-se entre futebol, cervejas e miúdas. Resta aguentar até lá.

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