A fúria legislativa

Alexandre Homem Cristo
Ionline 2013-11-04

Dezenas de burocratas vão legislando na linha dos seus interesses ou manias. Enquanto isso, os desafios dos nossos tempos continuam por resolver
Enquanto milhares de portugueses, preocupados com o seu futuro e com o da pátria, eram absorvidos pelo debate do Orçamento do Estado e pela apresentação do Guião para a Reforma do Estado, o governo não parou e promoveu duas iniciativas que apanharam o país de surpresa. A primeira, que limitaria o número de animais domésticos em apartamentos. A segunda, que proibiria aos médicos a utilização de gravata, pulseiras e anéis.
Não conheço com profundidade a fundamentação para cada uma destas iniciativas e, apesar de caricatas, aceito que não estarão totalmente desprovidas de sentido. Aliás, estou certo que, em ambos os casos, as intenções foram as melhores. Mas isso não apaga o facto de ambas serem de assuntos menores, longe das prioridades nacionais nos seus respectivos sectores, facto que sobressai no contexto de preparação do próximo Orçamento do Estado - o último do programa de ajustamento. Ou seja, torna-se incompreensível que, no contexto em que vivemos e com os desafios reformistas que temos pela frente, os gabinetes ministeriais percam tempo a trabalhar estas matérias, em detrimento de outras. É verdade que, entretanto, a ministra Cristas veio esclarecer que não perdeu tempo a considerar a proposta, que de resto não avançará. Mas, evidentemente, alguém no ministério não teve esse bom senso.
Para além de prioridades mal-estabelecidas, outro aspecto que sobressai é esta fúria legislativa de colocar o Estado a decidir acerca de tudo - o que vestimos, o que comemos, os animais que temos. Não penso que seja motivo para identificar aqui traços de fascismos ou totalitarismos, como fazem alguns dos críticos. Julgo que bastará salientar o óbvio, que é a evidente contradição entre este tipo de iniciativas legislativas e a doutrina liberal do governo e dos partidos da maioria que o suportam. Há aqui algo que, manifestamente, não encaixa.
Se este fosse um mal português, haveria a esperança de que o contágio das práticas europeias viesse, um dia, aliviar-nos desta tendência burocrata. Não é. Também esta semana, descobrimos que a União Europeia financiou, durante três anos e com cerca de 89 mil euros, um projecto para estandardizar os autoclismos nos países europeus. Assim, após três anos de longas pesquisas, recomenda o projecto que cada descarga passe de seis para cinco litros. Um litro é, portanto, o que separa hoje a indústria das sanitas e dos urinóis da protecção do ambiente - e isso resolve-se com uma directiva. Ora, sem querer ferir as susceptibilidades dos maníacos ambientais (aqueles que acham que o homem é uma praga), julgo que poucos considerarão este tempo e este dinheiro bem empregues.
Em Portugal, mas sobretudo na Europa, dezenas de burocratas vão legislando na linha dos seus interesses ou manias. Quase sempre, tendo como ponto de partida a melhor das intenções (por motivos ambientais ou de saúde pública, por exemplo). Mas, enquanto isso, os verdadeiros desafios dos nossos tempos continuam por resolver. Portugal permanece à espera de uma reforma do Estado que garanta um futuro mais sustentável do que o seu passado. E a Europa continua à espera que a crise económica se resolva sozinha. No meio disto, quem perde somos nós, claro. E a dobrar.

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