Três tempos, três Vias-Sacras
MARIA JOSÉ NOGUEIRA PINTO DN 2011-04-21
Na minha família sempre se rezou a Via-Sacra às três em ponto da tarde de Sexta-Feira Santa. As mulheres da casa ocupavam-se do altar improvisado sobre a lareira da sala, cumprindo uma hierarquia de idades. Com o passar dos anos os mais velhos foram partindo e uma nova geração veio preencher as fileiras e fomos sendo sempre mais e mais. Um missal do Séc. XIX passava de mão em mão para que todos participassem nas leituras. Era um livro com a lombada gasta, de que caíam muitos santinhos, escrito numa linguagem gongórica e totalmente desconhecida da nossa prol nada e criada no post Vaticano II. Em todas as Estações abundava a frase "Vós, misericordiosíssimo Senhor", o que provocava inevitáveis tropeços na leitura. Era uma cerimónia doméstica, terna e, apesar de alguma informalidade, muito devota.
No início da década de noventa o missal foi substituído por um molho de folhas dactilografadas, textos escritos por um grupo de pessoas muito diversas que tinham em comum serem voluntárias junto das prisões, de doentes de VIH, de toxicodependentes. A intenção que os moveu foi o de, Estação após Estação, estabelecer uma íntima ligação entre o sofrimento de Cristo e o sofrimento desta humanidade, ambos sempre renovados, entre o Mistério da Paixão e a imutável condição humana, entre os trágicos acontecimentos que rodearam a Cruz e a sua proximidade com o nosso tempo: o domínio da guerra sobre a paz, a constante violação dos direitos humanos, as novas doenças ameaçadoras e segregadoras. E como eram escritas numa linguagem simples, e quem as escreveu conhecia por dentro estas realidades o novo texto ganhou no realismo com que aproximou tempos separados por séculos e na clareza com que demonstrou a permanência do essencial. Na nossa família há de tudo como na botica, graças a Deus, e as reacções foram diversas: para uns dessacralizava, para outros actualizava, para uns banalizava, para outros devolvia a realidade pura e dura das coisas. Certo é que, no geral, a nossa Via-Sacra II introduziu uma forte melhoria no modo de participar e de entender o que, verdadeiramente, está em causa na Paixão de Deus feito homem.
Foi recentemente publicada, por iniciativa do reitor do Santuário do Cristo Rei, uma Via-Sacra a partir de contributos pedidos a diversas pessoas. Conta o padre Sezinando Alberto que se inspirou em catorze grandes quadros a óleo que no Santuário polaco da Virgem Negra retratam a Paixão "através de cenas dramáticas da história recente daquele país". De novo ganha força a ideia "da correspondência da actualidade da paixão de Cristo" não apenas em cada homem mas à dimensão planetária.
Quando a li apercebi-me da curiosa mudança nos temas escolhidos, comparativamente com os do início da década de noventa. Pondo à parte o texto do missal que parece limitar-se a uma narrativa em círculo fechado com os seus personagens históricos, como se tudo começasse e acabasse ali, circunscrito num tempo e num espaço irrepetíveis, a evolução entre os outros dois textos é notória: as novas formas de violência que levam a que a religião cristã seja hoje a mais perseguida no mundo, a paganização da sociedade em nome da laicidade dos Estados, a vivência da fé reduzida ao foro íntimo de cada um, o ataque sistemático a todos os valores que forjaram a nossa civilização, as crescentes desigualdades na distribuição dos rendimentos, com o consequente aumento da pobreza para níveis intoleráveis constituem, agora, temáticas centrais.
O mundo mudou muito nas últimas décadas e sempre que pensamos que mudou para melhor verificamos que novas e subtis formas de ditadura e de violência vieram substituir outras. A correspondência da actualidade da Paixão de Cristo é uma realidade que se nos impõe no nosso quotidiano e vivê-la nessa perspectiva pode bem valer a pena.
Na minha família sempre se rezou a Via-Sacra às três em ponto da tarde de Sexta-Feira Santa. As mulheres da casa ocupavam-se do altar improvisado sobre a lareira da sala, cumprindo uma hierarquia de idades. Com o passar dos anos os mais velhos foram partindo e uma nova geração veio preencher as fileiras e fomos sendo sempre mais e mais. Um missal do Séc. XIX passava de mão em mão para que todos participassem nas leituras. Era um livro com a lombada gasta, de que caíam muitos santinhos, escrito numa linguagem gongórica e totalmente desconhecida da nossa prol nada e criada no post Vaticano II. Em todas as Estações abundava a frase "Vós, misericordiosíssimo Senhor", o que provocava inevitáveis tropeços na leitura. Era uma cerimónia doméstica, terna e, apesar de alguma informalidade, muito devota.
No início da década de noventa o missal foi substituído por um molho de folhas dactilografadas, textos escritos por um grupo de pessoas muito diversas que tinham em comum serem voluntárias junto das prisões, de doentes de VIH, de toxicodependentes. A intenção que os moveu foi o de, Estação após Estação, estabelecer uma íntima ligação entre o sofrimento de Cristo e o sofrimento desta humanidade, ambos sempre renovados, entre o Mistério da Paixão e a imutável condição humana, entre os trágicos acontecimentos que rodearam a Cruz e a sua proximidade com o nosso tempo: o domínio da guerra sobre a paz, a constante violação dos direitos humanos, as novas doenças ameaçadoras e segregadoras. E como eram escritas numa linguagem simples, e quem as escreveu conhecia por dentro estas realidades o novo texto ganhou no realismo com que aproximou tempos separados por séculos e na clareza com que demonstrou a permanência do essencial. Na nossa família há de tudo como na botica, graças a Deus, e as reacções foram diversas: para uns dessacralizava, para outros actualizava, para uns banalizava, para outros devolvia a realidade pura e dura das coisas. Certo é que, no geral, a nossa Via-Sacra II introduziu uma forte melhoria no modo de participar e de entender o que, verdadeiramente, está em causa na Paixão de Deus feito homem.
Foi recentemente publicada, por iniciativa do reitor do Santuário do Cristo Rei, uma Via-Sacra a partir de contributos pedidos a diversas pessoas. Conta o padre Sezinando Alberto que se inspirou em catorze grandes quadros a óleo que no Santuário polaco da Virgem Negra retratam a Paixão "através de cenas dramáticas da história recente daquele país". De novo ganha força a ideia "da correspondência da actualidade da paixão de Cristo" não apenas em cada homem mas à dimensão planetária.
Quando a li apercebi-me da curiosa mudança nos temas escolhidos, comparativamente com os do início da década de noventa. Pondo à parte o texto do missal que parece limitar-se a uma narrativa em círculo fechado com os seus personagens históricos, como se tudo começasse e acabasse ali, circunscrito num tempo e num espaço irrepetíveis, a evolução entre os outros dois textos é notória: as novas formas de violência que levam a que a religião cristã seja hoje a mais perseguida no mundo, a paganização da sociedade em nome da laicidade dos Estados, a vivência da fé reduzida ao foro íntimo de cada um, o ataque sistemático a todos os valores que forjaram a nossa civilização, as crescentes desigualdades na distribuição dos rendimentos, com o consequente aumento da pobreza para níveis intoleráveis constituem, agora, temáticas centrais.
O mundo mudou muito nas últimas décadas e sempre que pensamos que mudou para melhor verificamos que novas e subtis formas de ditadura e de violência vieram substituir outras. A correspondência da actualidade da Paixão de Cristo é uma realidade que se nos impõe no nosso quotidiano e vivê-la nessa perspectiva pode bem valer a pena.
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