"Já gastámos as palavras pela rua"
Público 2011-04-25 Helena Matos
37 anos depois do 25 de AbrilTalvez tenha sido porque estive a arrumar papéis para os impostos, actividade que materializa a sensação de perda, pois, ano a ano, ganha-se menos e paga-se mais. Ou talvez a culpa seja daquela palavra troika repetida à exaustão em todos os noticiários: a troika ia para aqui, a troika ia para acolá, a troika chegava uns minutos antes da hora prevista... Enfim, tem sido um fartar de troika na rua, troika no automóvel, troika a entrar no elevador. E uma pessoa olha e só vê umas criaturas mudas - a troika -, os jornalistas frenéticos tentando obter uma declaração da troika, os carros a partirem levando a troika para longe da nossa vista e deixando-nos na angustiante dúvida se, mal se viu a salvo do nosso olhar, a troika perdeu a compostura calvinista e desatou a rir de nós, da nossa aflição e do ar decadente de tudo isto.
Há uns dias, poucos, verborreia equivalente era gerada pela expressão "dívida soberana". De cada vez que a televisão e as rádios repetiam a palavra "soberana", acentuando a sibilante inicial e prolongando a sílaba tónica, era como se tivéssemos ganho de novo o torneio de Arcos de Valdevez, só que agora o troféu era a dívida soberana. (O que, além de ridículo, é patético, pois, na nossa actual situação, "dívida soberana" é uma expressão que contém em si mesma uma contradição insanável entre os termos, pois foi precisamente porque a dívida cresceu tanto que o país perdeu boa parte da sua soberania, a não ser que por nossa soberania se entenda a dívida propriamente dita.)
À beira de comemorarmos o 37.º aniversário do 25 de Abril, o verso de Eugénio de Andrade que dá título a esta crónica é o retrato mais rigoroso da nossa presente situação nacional: "Já gastámos as palavras pela rua (...) O passado é inútil como um trapo. E já te disse: as palavras estão gastas."
Todas as palavras com que construímos o ideário destes 37 anos - justiça, dignidade, solidariedade, independência - não só nos parecem subitamente gastas como quando as repetimos não acontece absolutamente nada. E, contudo, como escreveu Eugénio de Andrade, "tenho a certeza de que todas as coisas estremeciam quando as pronunciávamos." Mas isso foi antes de as palavras estarem gastas.
Esta relação adolescente com as palavras - somos como aqueles gaiatos que, entre acne e balões de pastilha elástica, se deleitam proferindo as palavras giras de cada momento - é um sinal dos patéticos ardis a que recorremos para não nos confrontarmos com a nossa imagem no espelho. Mas não só. Na verdade, na política, a nossa relação com as palavras nem chega à adolescência, pois é pouco mais que infantil: basta que alguém diga três vezes "combater as injustiças", duas "inclusão" e uma "solidariedade" para que, de imediato, como nos contos populares, aquele que profere estas palavras passe a falar por elas e a ser identificado com elas. Não quer isto dizer que se acredite que é realmente assim mas tem-se a forte convicção de que seria melhor que assim fosse.
Por exemplo, há anos que sabemos que a lei das rendas impede a mobilidade, condena as cidades à degradação e obriga a imensa maioria que não goza do privilégio dessas rendas baixíssimas a comprar casa. E há anos também, e estou a recuar até aos anos 60 do século passado, que qualquer deputado que ousasse dizer que isto tinha de mudar porque seria melhor para o país e para todos nós se arriscava a ser tratado como um ser destituído de sensibilidade social. Por isso agora é quase com alívio que se ouve que a troika vai impor a liberalização do arrendamento. Assim nós podemos continuar com o nosso discurso político cheio de palavras mágicas como "protecção dos mais pobres" e "senhorios parasitas", enquanto se transfere a responsabilidade da mudança que sabemos indispensável para alguém vindo de fora.
Agora, que as palavras estão gastas, procuramos por todos meios que outras palavras façam de conta que se mantém o que sabemos que acabou - o amor e a política são tão semelhantes, não é? Assim, se recuarmos, não necessariamente dias pois umas horas bastam, constataremos que, antes da troika e da dívida soberana, andámos às voltas com a palavra regime. De repente, descobriu-se que o regime estava bloqueado, que o regime precisava de ser refundado, que o regime era o problema. (E, como sempre que se fala da refundação do regime, surge Otelo Saraiva de Carvalho a contar espingardas e fazendo declarações que nos levam a pensar não que ele tenha feito o 25 de Abril, como diz, mas sim que o 25 de Abril se tenha feito apesar dele.)
Atacar o regime é a forma mais fácil de não se falar de política e sobretudo de desculpabilizar em geral quem a tem feito, e muito em particular serve para desresponsabilizar o Governo.
Há uns dias, poucos, verborreia equivalente era gerada pela expressão "dívida soberana". De cada vez que a televisão e as rádios repetiam a palavra "soberana", acentuando a sibilante inicial e prolongando a sílaba tónica, era como se tivéssemos ganho de novo o torneio de Arcos de Valdevez, só que agora o troféu era a dívida soberana. (O que, além de ridículo, é patético, pois, na nossa actual situação, "dívida soberana" é uma expressão que contém em si mesma uma contradição insanável entre os termos, pois foi precisamente porque a dívida cresceu tanto que o país perdeu boa parte da sua soberania, a não ser que por nossa soberania se entenda a dívida propriamente dita.)
À beira de comemorarmos o 37.º aniversário do 25 de Abril, o verso de Eugénio de Andrade que dá título a esta crónica é o retrato mais rigoroso da nossa presente situação nacional: "Já gastámos as palavras pela rua (...) O passado é inútil como um trapo. E já te disse: as palavras estão gastas."
Todas as palavras com que construímos o ideário destes 37 anos - justiça, dignidade, solidariedade, independência - não só nos parecem subitamente gastas como quando as repetimos não acontece absolutamente nada. E, contudo, como escreveu Eugénio de Andrade, "tenho a certeza de que todas as coisas estremeciam quando as pronunciávamos." Mas isso foi antes de as palavras estarem gastas.
Esta relação adolescente com as palavras - somos como aqueles gaiatos que, entre acne e balões de pastilha elástica, se deleitam proferindo as palavras giras de cada momento - é um sinal dos patéticos ardis a que recorremos para não nos confrontarmos com a nossa imagem no espelho. Mas não só. Na verdade, na política, a nossa relação com as palavras nem chega à adolescência, pois é pouco mais que infantil: basta que alguém diga três vezes "combater as injustiças", duas "inclusão" e uma "solidariedade" para que, de imediato, como nos contos populares, aquele que profere estas palavras passe a falar por elas e a ser identificado com elas. Não quer isto dizer que se acredite que é realmente assim mas tem-se a forte convicção de que seria melhor que assim fosse.
Por exemplo, há anos que sabemos que a lei das rendas impede a mobilidade, condena as cidades à degradação e obriga a imensa maioria que não goza do privilégio dessas rendas baixíssimas a comprar casa. E há anos também, e estou a recuar até aos anos 60 do século passado, que qualquer deputado que ousasse dizer que isto tinha de mudar porque seria melhor para o país e para todos nós se arriscava a ser tratado como um ser destituído de sensibilidade social. Por isso agora é quase com alívio que se ouve que a troika vai impor a liberalização do arrendamento. Assim nós podemos continuar com o nosso discurso político cheio de palavras mágicas como "protecção dos mais pobres" e "senhorios parasitas", enquanto se transfere a responsabilidade da mudança que sabemos indispensável para alguém vindo de fora.
Agora, que as palavras estão gastas, procuramos por todos meios que outras palavras façam de conta que se mantém o que sabemos que acabou - o amor e a política são tão semelhantes, não é? Assim, se recuarmos, não necessariamente dias pois umas horas bastam, constataremos que, antes da troika e da dívida soberana, andámos às voltas com a palavra regime. De repente, descobriu-se que o regime estava bloqueado, que o regime precisava de ser refundado, que o regime era o problema. (E, como sempre que se fala da refundação do regime, surge Otelo Saraiva de Carvalho a contar espingardas e fazendo declarações que nos levam a pensar não que ele tenha feito o 25 de Abril, como diz, mas sim que o 25 de Abril se tenha feito apesar dele.)
Atacar o regime é a forma mais fácil de não se falar de política e sobretudo de desculpabilizar em geral quem a tem feito, e muito em particular serve para desresponsabilizar o Governo.
Mas nós não só não precisamos como não devemos mudar o regime. Aliás, no meio do enorme falhanço que a nossa situação económica representa e do descrédito da justiça, o que nos sobra e funciona regularmente são precisamente as instituições da democracia. O nosso problema não é, portanto, das instituições, mas sim, em primeiro lugar, de quem escolhemos para as ocupar. E, em segundo, da crescente tolerância e consequente cumplicidade que a sociedade portuguesa foi mostrando perante o que outrora se chamou corrupção e mentira e que, num dia cuja data não recordamos, se passou a designar por tratamento preferencial e inverdade. Desde esse dia que "gastámos as palavras". Desde esse dia que sabemos que isto nos ia acontecer. Com troika e tudo o mais. Ensaísta
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