Sem desculpa

Público 2011-04-12 Pedro Lomba

Em 1986, eu e os meus irmãos íamos directos para o último comício de Freitas do Amaral antes das eleições presidenciais. Estávamos todos absurdamente equipados. Bandeiras, autocolantes, a quinquilharia típica das campanhas. Embora eu não tivesse inteira percepção do que se passava, sabia que aquela parafernália representava algo importante. A democracia é feita de um lado lúdico e festivo que faz dela talvez o regime mais infantil, se excluirmos todos os outros.

Essa é a primeira memória eleitoral que guardo. A memória de uma campanha de rua no tempo das campanhas de rua. A memória de uma enchente de pessoas ouvindo o discurso de um homem formal que falava, como ainda fala, como um professor. De vez em quando, alguns amigos do lado oposto relembram o período com igual espírito de conquista. Quando Mário Soares ganhou as eleições, eles contam que entraram nos liceus com aquela segurança inabalável que costuma distinguir quem acaba de vencer o que quer que seja. A vitória política pode ser uma poderosa descarga hormonal, o que ajuda a perceber a proximidade que sempre existiu entre poder e sexo. Nessas eleições, Soares tinha andado por baixo quase todo o tempo, vítima da impopularidade do Bloco Central. Passou por pouco a primeira volta e, na segunda, adivinhava-se uma vitória de Freitas do Amaral. Mas, contra as expectativas, Soares ganhou mesmo, e naquele contexto eu e a minha circunstância encarámos o facto como uma ofensa pessoal.

Muitas eleições se seguiram ao fracasso de 1986. Algumas melhores do que outras; outras sem memória. As maiorias do cavaquismo. As antecipadas após a despedida de Guterres, prenúncio do que viria a ser década perdida. Mas é a 1986 que eu regresso quando penso que as legislativas de Junho neste triste ano de 2011 não podem ser menorizadas, falsificadas, boicotadas.

Insisto nisso, porque os riscos de confusão estão aí. Afinal, as sondagens exibem divisão nas pessoas. Afinal, o próximo Governo defrontar-se-á com um apertado plano de austeridade para os próximos anos. Vigiado pela Europa e pelo FMI, será forçado a arrumar a sala depois da luxúria socialista. A sua margem será curta, os seus limites serão rígidos. Quem estiver atento às contrapartidas que os líderes europeus estão a exigir, sabe que vai ser assim.

Até isso devemos ao primeiro-ministro Sócrates. Não se limitou a espoliar-nos da nossa soberania financeira quando irresponsavelmente nos deixou cair no remoinho dos juros e tornou inevitável o pedido de ajuda externa para o Estado e os bancos cumprirem as suas obrigações mais básicas. Sócrates, não exagero, expropriou-nos também da democracia. Quando em Maio estiver pronto o plano de intervenção externa para um período de três anos, que liberdade caberá ao Governo que vier senão para cortar, exasperar, sufocar a nossa já parca confiança? Não é um preço admirável. E com que liberdade iremos votar em Junho senão para selar um destino já traçado?

Sócrates estragou-nos o passado e o futuro. Sabemos hoje que encenou uma fuga, como logo após a sua demissão escrevi aqui: um fugitivo que tenta manipular as suas próprias responsabilidades e transferir culpas. Ao contrário do que ele diz com insistência, ninguém o demitiu. Ele é que se demitiu. Ao contrário do que ele repete com dolo, não foi o chumbo do PEC4 que nos conduziu aqui. Foi a hecatombe de um Governo que errou e ficou sem saída e não quis perder a face.

Por isso, estas eleições são decisivas. Mostrar-nos-ão aquilo que valemos, até onde vai a nossa aprendizagem e discernimento. Se os portugueses não castigarem quem nos mentiu e continua a mentir para além do tolerável, então as próximas eleições ficarão reduzidas a nada. Não seremos melhor do que a congregação disciplinada de Matosinhos que, num gesto de fé, se reuniu no fim-de-semana e em que um primeiro-ministro teve a lata de nos falar como se estivesse na oposição. Chegámos ao fim. É um problema de decência. Jurista

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