Tecnologia sem misericórdia

Público 2011-04-04 João Carlos Espada
Que motivações levaram os nazis alemães e os comunistas soviéticos a produzir deliberadamente assassinatos em massa?

Um dos mais citados livros recentes na Polónia é Bloodlands: Europe Between Hitler and Stalin, publicado em Outubro de 2010 por Timothy Snyder. Professor de História em Yale, Snyder é autor de várias obras de grande qualidade sobre História Europeia, com particular ênfase na Europa central e oriental. Mas Bloodlands é mais do que um livro de História. É um tremendo testemunho sobre o barbarismo nazi e comunista que literalmente varreu a Europa no século XX.

Snyder fez um levantamento criterioso do número de vítimas civis produzidas premeditadamente pelo nazismo e pelo comunismo.

"No total, o nazismo alemão matou deliberadamente 11 milhões de não-combatentes, um número que sobe para 12 milhões se forem incluídas mortes previsíveis decorrentes de deportação, fome, e sentenças em campos de concentração. Para os soviéticos durante o período de Estaline, os números análogos são aproximadamente de seis a nove milhões."

Snyder regista que, até ao início da segunda Guerra Mundial, o regime de Estaline tinha sido o mais mortífero. A Alemanha nazi terá iniciado as campanhas de exterminação em massa sobretudo a partir do Pacto Molotov-Ribbentrop do Verão de 1939 e da invasão germano-soviética da Polónia em 1939. Cerca de 200 mil civis polacos foram mortos entre 1939 e 1941, cerca de metade pelos nazis, a outra metade pelos comunistas.

Em Dezembro de 1941, quando Hitler terá oficialmente comunicado a sua decisão de matar todos os judeus, Snyder calcula que cerca de 1 milhão de judeus já teriam sido assassinados na União Soviética ocupada pelos alemães. No conjunto, os nazis mataram deliberadamente cerca de 5,4 milhões de judeus, dos quais 2,6 milhões terão sido baleados e 2,8 milhões exterminados em câmaras de gás.

A maior catástrofe humana do estalinismo foi "A Grande Fome" de 1930-1933, na qual morreram mais de 5 milhões de pessoas. Destes, cerca de 3,3 milhões eram ucranianos que foram vítimas de uma política de "limpeza étnica" deliberadamente posta em marcha por Estaline. Os soviéticos não só requisitaram todo o trigo ucraniano, sabendo que iriam provocar uma fome generalizada, como fecharam as fronteiras da Ucrânia soviética, criando um gigantesco campo de morte lenta. No "Grande Terror" iniciado por Estaline em 1937, estima-se que 682.691 pessoas foram deliberadamente assassinadas. Entre 1933 e 1945, cerca de um milhão de pessoas morreram no Gulag estalinista.

A escala destas tragédias premeditadas é brutal. Custa a acreditar que seres humanos possam ter provocado deliberadamente estas mortes em massa de outros seres humanos. É por isso inteiramente legítimo, em rigor necessário, não deixar apagar a memória destas barbaridades. Para sabermos que foi realmente possível, e para sabermos que é necessário impedir que volte a ser possível.

Mas isso levanta a questão mais difícil de saber como foi possível. Que motivações levaram os nazis alemães e os comunistas soviéticos a produzir deliberadamente assassinatos em massa?

Existe naturalmente uma vasta literatura sobre este tema e a pergunta continua em aberto. Mas, após ler e reler muitas tentativas de resposta, somos tentados a regressar a uma observação muito simples do grande historiador liberal inglês do século XIX Lord Macaulay, hoje infelizmente pouco lembrado. Ele referia-se ao papel civilizador da religião cristã e da tradição jucaico-cristã na história inglesa e na Europa em geral.

Colocando a hipótese - para ele, à época, sobretudo académica - de um total apagamento da dimensão religiosa da civilização europeia, Macaulay anteviu com horror o que restaria da Europa: "The frightfulness of technical civilisation without its mercy."

Quando somos confrontados com as acções de extermínio premeditado pelo nazismo alemão e pelo comunismo soviético, e quando recordamos o ateísmo militante de ambos os exterminadores, a reflexão de Macaulay é inescapável: o horror da civilização técnica (na linguagem de hoje, talvez tecnológica) sem a sua misericórdia. Director do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa; titular da cátedra European Parliament/ Bronislaw Geremek in European Civilization no Colégio da Europa, Campus de Natolin, Varsóvia

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