No centenário da lei da separação

Pedro Picoito
RR on-line 17-04-2011

Na próxima 4ª-feira, 20 de Abril, comemoramos o centenário de uma das maiores guerras culturais da I República: a Lei da Separação entre a Igreja e o Estado. Símbolo histórico da laicidade em Portugal, a lei cometeu o erro, no entanto, de transformar a laicidade em questão religiosa, na expressão de Fernando Rosas. Ou seja, a Lei da Separação entre a Igreja e o Estado foi, em muitos aspectos, uma lei de submissão da Igreja ao Estado.
O fim das suas duas centenas de artigos, actualização do eterno programa do Estado moderno descrito por Tocqueville de esvaziar as instituições intermédias entre o poder central e os indivíduos, era destituir a Igreja de personalidade jurídica, convertendo-a em mera associação de direito privado. Em consequência, todos os bens das dioceses e das paróquias foram nacionalizados, uma vez que a Igreja não podia ser proprietária. (Convém lembrar que os bens das ordens religiosas já tinham sido nacionalizados em 8 de Outubro de 1910, quando estas foram extintas, o que significa que em meio ano a Igreja portuguesa perdeu todo o património.) Para sustentar o clero, foi instituída uma pensão a requerer ao Ministério da Justiça, o que, além de humilhante, continuava a tradição regalista de tratar os padres como funcionários públicos, ao mesmo tempo que se proibiam quaisquer dádivas dos fiéis à Igreja. A lei impunha também grandes limitações ao culto público, exigindo que as autoridades civis regulassem missas, procissões e até o toque dos sinos. Por fim, criava as famigeradas “comissões cultuais” para administrar as paróquias, comissões nomeadas pelo poder local e de que o respectivo pároco estava excluído, gerando casos bizarros em que os caciques republicanos organizavam (nem sempre com benevolência) a vida religiosa da população.
Em suma, a lei era “uma declaração de guerra à Igreja”, como lhe chamou Vasco Pulido Valente, e a Igreja reagiu em conformidade. No mês seguinte, o Papa Pio X publicou uma encíclica e os bispos portugueses um protesto colectivo em que condenavam sem apelo as pensões do Estado e as comissões cultuais. Em resposta, o Governo republicano puniu com o desterro todos os bispos do Continente, levando à situação inaudita de Portugal não ter durante largos meses uma única diocese, exceptuando a Madeira e os Açores, com bispo residente. Mais: em 1912, o culto católico, embora raramente suprimido, tornara-se formalmente ilegal na quase totalidade das paróquias, umas porque não tinham cultual (não reconhecida pela Igreja), outras porque não tinham pároco (não reconhecido pelo Estado).
A resistência da Igreja foi, porém, muito eficaz. Nas cerca de 4 mil paróquias do país, só em 300, sobretudo do Sul e de Lisboa, se nomearam comissões, e só cerca de 10% dos padres, mais uma vez sobretudo no Sul, requereram a pensão ao Ministério da Justiça, sendo a maioria suspensa pelo respectivo bispo.
É verdade que a Lei da Separação “abriu um espaço novo de liberdade para a Igreja”, nas palavras do Papa Bento XVI quando nos visitou há um ano, mas essa liberdade foi conquistada - não foi dada pelo Estado. Foi o clero português, na sua luta contra uma lei iníqua, que fez a verdadeira separação. A laicidade entre nós deve tanto à ideologia republicana como à fé dos católicos.



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