Ainda sobre o 25 de Abril
Público 2011-04-25 João Carlos Espada As democracias nunca prometeram o paraíso porque não são acerca de resultados. São acerca de regras de conduta
O melhor sintoma da vitalidade de uma democracia adulta reside em não se falar dela. Esse é o sintoma de que uma democracia se tornou aquilo que de facto é: o regime político normal entre povos civilizados.
Numa democracia adulta, as pessoas discutem políticas rivais e comparam as vantagens e desvantagens em adoptar uma ou outra. Mas não põem em causa, obviamente, o sistema de regras que lhes permite discordar e discutir livremente. A esse sistema de regras que permite a discussão e escolha livres chamamos democracia, mais exactamente democracia liberal.
Em regra, é isso que se tem passado entre nós nos últimos 37 anos, se descontarmos o período do chamado PREC e suas sequelas. É por isso um tanto ou quanto aborrecido começar a ouvir umas vozes dizendo que, perante a crise a que chegamos hoje, não valia a pena ter havido o 25 de Abril. Afinal, opinam essas vozes, a democracia não nos trouxe o paraíso que nos tinha prometido.
Há aqui um equívoco, talvez um pouco grosseiro. As democracias nunca prometeram o paraíso, nem qualquer outro resultado particular, simplesmente porque não são acerca de resultados. São acerca de regras de conduta, de procedimentos. Essas regras permitem que os cidadãos escolham políticas, e são estas que produzem os resultados. Se os resultados, numa democracia, desapontam os cidadãos, talvez seja altura de mudar de políticas. Eventualmente, também de ajustar procedimentos para facilitar essas mudanças (como seria o caso de introduzir mais concorrência no sistema eleitoral).
Uma "não-democracia", entre povos civilizados, é um estado de excepção. Não é uma opção normal, ou habitual, como a opção democrática. Isso mesmo foi dito com naturalidade por Winston Churchill, num célebre discurso em Paris, a 24 de Setembro de 1936, contra o despotismo nazi e comunista:
"Como poderemos nós, criados como fomos num clima de liberdade, tolerar ser amordaçados e silenciados; ter espiões, bisbilhoteiros e delatores a cada esquina; deixar que até as nossas conversas privadas sejam escutadas e usadas contra nós pela polícia secreta e todos os seus agentes e sequazes; ser detidos e levados para a prisão sem julgamento; ou ser julgados por tribunais políticos ou partidários por crimes até então desconhecidos do direito civil? Como poderemos tolerar ser tratados como rapazinhos, quando somos homens adultos?"
É certo que o regime autoritário derrubado a 25 de Abril de 1974 não tinha comparação possível com o despotismo totalitário dos regimes nazi e comunista. Mas era um regime de excepção, com procedimentos anormais, não habituais, como aqueles que Churchill descreveu na citação acima.
Esse regime de excepção terá tido justificações excepcionais, ainda assim discutíveis, em 1926, quando o país se debatia no caos em que se saldou a I República - ela própria um regime de excepção não democrático. Mas por que razão precisava Portugal de um regime de excepção a seguir à vitória das democracias no Ocidente, após a II Guerra Mundial, em 1945?
A esta luz, o único tópico realmente intrigante não é o de saber se terá valido a pena o 25 de Abril. O tópico realmente intrigante consiste em saber por que é que a transição à democracia só ocorreu em Portugal em 1974, e não 30 anos mais cedo.
Em suma, não faz qualquer sentido discutir se o 25 de Abril valeu ou não a pena, tendo em conta a situação financeira e económica a que chegamos hoje. Alexis de Tocqueville respondeu a esses disparates de forma conclusiva, em 1856, no seu livro sobre O Antigo Regime e a Revolução:
"É bem verdade que, no longo prazo, a liberdade conduz sempre, aqueles que sabem conservá-la, ao bem-estar e muitas vezes à riqueza; mas há ocasiões em que ela perturba momentaneamente o usufruto desses bens; e há outras em que só o despotismo pode oferecer o seu usufruto passageiro. Os homens que só valorizam na liberdade o usufruto desses bens nunca a conservaram por muito tempo.
"Aquilo que, em todos os tempos, ancorou a liberdade no coração de alguns homens foi o seu encanto próprio, independentemente dos seus benefícios: foi o prazer de poder falar, agir, respirar sem constrangimento, sob o único governo de Deus e das leis."
Numa democracia adulta, as pessoas discutem políticas rivais e comparam as vantagens e desvantagens em adoptar uma ou outra. Mas não põem em causa, obviamente, o sistema de regras que lhes permite discordar e discutir livremente. A esse sistema de regras que permite a discussão e escolha livres chamamos democracia, mais exactamente democracia liberal.
Em regra, é isso que se tem passado entre nós nos últimos 37 anos, se descontarmos o período do chamado PREC e suas sequelas. É por isso um tanto ou quanto aborrecido começar a ouvir umas vozes dizendo que, perante a crise a que chegamos hoje, não valia a pena ter havido o 25 de Abril. Afinal, opinam essas vozes, a democracia não nos trouxe o paraíso que nos tinha prometido.
Há aqui um equívoco, talvez um pouco grosseiro. As democracias nunca prometeram o paraíso, nem qualquer outro resultado particular, simplesmente porque não são acerca de resultados. São acerca de regras de conduta, de procedimentos. Essas regras permitem que os cidadãos escolham políticas, e são estas que produzem os resultados. Se os resultados, numa democracia, desapontam os cidadãos, talvez seja altura de mudar de políticas. Eventualmente, também de ajustar procedimentos para facilitar essas mudanças (como seria o caso de introduzir mais concorrência no sistema eleitoral).
Uma "não-democracia", entre povos civilizados, é um estado de excepção. Não é uma opção normal, ou habitual, como a opção democrática. Isso mesmo foi dito com naturalidade por Winston Churchill, num célebre discurso em Paris, a 24 de Setembro de 1936, contra o despotismo nazi e comunista:
"Como poderemos nós, criados como fomos num clima de liberdade, tolerar ser amordaçados e silenciados; ter espiões, bisbilhoteiros e delatores a cada esquina; deixar que até as nossas conversas privadas sejam escutadas e usadas contra nós pela polícia secreta e todos os seus agentes e sequazes; ser detidos e levados para a prisão sem julgamento; ou ser julgados por tribunais políticos ou partidários por crimes até então desconhecidos do direito civil? Como poderemos tolerar ser tratados como rapazinhos, quando somos homens adultos?"
É certo que o regime autoritário derrubado a 25 de Abril de 1974 não tinha comparação possível com o despotismo totalitário dos regimes nazi e comunista. Mas era um regime de excepção, com procedimentos anormais, não habituais, como aqueles que Churchill descreveu na citação acima.
Esse regime de excepção terá tido justificações excepcionais, ainda assim discutíveis, em 1926, quando o país se debatia no caos em que se saldou a I República - ela própria um regime de excepção não democrático. Mas por que razão precisava Portugal de um regime de excepção a seguir à vitória das democracias no Ocidente, após a II Guerra Mundial, em 1945?
A esta luz, o único tópico realmente intrigante não é o de saber se terá valido a pena o 25 de Abril. O tópico realmente intrigante consiste em saber por que é que a transição à democracia só ocorreu em Portugal em 1974, e não 30 anos mais cedo.
Em suma, não faz qualquer sentido discutir se o 25 de Abril valeu ou não a pena, tendo em conta a situação financeira e económica a que chegamos hoje. Alexis de Tocqueville respondeu a esses disparates de forma conclusiva, em 1856, no seu livro sobre O Antigo Regime e a Revolução:
"É bem verdade que, no longo prazo, a liberdade conduz sempre, aqueles que sabem conservá-la, ao bem-estar e muitas vezes à riqueza; mas há ocasiões em que ela perturba momentaneamente o usufruto desses bens; e há outras em que só o despotismo pode oferecer o seu usufruto passageiro. Os homens que só valorizam na liberdade o usufruto desses bens nunca a conservaram por muito tempo.
"Aquilo que, em todos os tempos, ancorou a liberdade no coração de alguns homens foi o seu encanto próprio, independentemente dos seus benefícios: foi o prazer de poder falar, agir, respirar sem constrangimento, sob o único governo de Deus e das leis."
Director do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa; titular da cátedra European Parliament/Bronislaw Geremek in European Civilization no Colégio da Europa, Campus de Natolin, Varsóvia
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Ou somos rapazinhos?