Salvação nacional. A palavra ao Presidente.

José Ribeiro e Castro
Jornal i, 2011-03-13
É difícil aceitar como chegámos aqui. Raramente se ouviu tanta gente a falar de “fim de regime”, de que esta República chegou ao fim. E há várias razões para esse sentimento.
No dia 11 de Março, pela manhãzinha, Sócrates pôs o ministro das Finanças a anunciar um novo PEC, o quarto de uma série frenética em menos de um ano. Ao modo dos cognomes dos Reis, foi assim: em Abril, acabado de cair o pano sobre a grande encenação do Orçamento de Estado 2010, chegava o PEC I, “O Breve”, o tal que ia pôr tudo em boa ordem; em Maio, vinha já o PEC II, “O Mentiroso”, a mostrar que o anterior fora mentira, como ele seria também; no fim de Setembro, em cima do OE 2011, anunciou-se o PEC III, “O Depressor”, cujos efeitos recessivos o governo sempre teimou em negar; e, como a verdade tem muita força, aí está agora o PEC IV, “O Ruinoso”, consequência do anterior. Não será ainda o último; nem o penúltimo ou antepenúltimo, se isto não levar uma volta.
O governo perdeu a mão por completo. Mostra, mês após mês, que o país está desgovernado. Face ao sofrimento e desnorte do país, chamar “estabilidade” a esta cascata de PEC, uns atrás dos outros, só por ironia, graça pesada, humor negro.
Não era difícil prever que seria assim. O plano inclinado estava à vista. Eu próprio, que não sou bruxo, fui dos que o previ e disse. Com a fragilidade da situação política e a contínua deterioração financeira do Estado e do país, viria sempre pior a seguir ao mau. Tem sido assim.
No 10 de Junho, o Presidente da República chegou a dizer: “Como avisei na altura devida, chegámos a uma situação insustentável” – e, todavia, a situação continuou a ser sustentada. Nunca percebi que não se forçasse a clarificação política indispensável durante o primeiro semestre de 2010. E não percebo a razão – razão com sentido nacional – por que, não se querendo precipitar eleições nessa altura, se necessário fosse, se irá fazê-lo agora.
Pasma como, enfrentando Portugal uma crise financeira terrível, a crise mais severa desde há mais de um século, que pesa como fardo insuportável sobre toda a economia e praga negra sobre a vida e o futuro dos cidadãos, a política continua a rolar em clima de campanha e pré-campanha eleitoral desde há três anos consecutivos.
O primeiro-ministro e o seu incorrigível estilo “panglossiano” têm aí a principal responsabilidade: sistemático discurso de negação; incapacidade de assumir a má notícia; e, entre outros tiques da maioria absoluta de 2005, falta de vontade real para estabelecer acordos e compromissos duradouros. Mas a responsabilidade não é exclusivamente sua.
Quando recordamos a campanha eleitoral de 2009 e o chorrilho de mentiras do governo e do PS, não custa entender que as pessoas desacreditem cada vez mais. Como esquecer a escandalosa ficção de sustentar até ao final desse ano que o défice público não seria superior a 5,7% do PIB? E, depois do extraordinário aumento da função pública em ano de eleições, bastaria percorrer o programa eleitoral dos socialistas para corar de vergonha – se a houvesse. Ele era TGV, novo aeroporto e terceira travessia do Tejo; ele era mais auto-estradas, SCUT velhas e novas, PPP em abundância; ele era prestações sociais em alta, RSI a rodos, novo cheque-bebé, etc. – pacotes de fartura para enganar eleitores. Quem pretende o ministro das Finanças enganar quando diz, agora, que “a oposição anda a enganar os portugueses” a respeito de “sacrifícios”?
Com tudo isso denunciado, deixou-se que Sócrates formasse governo minoritário – ainda com esse programa extravagante! E, quando já era impossível esconder a gravidade e extensão da crise, com o défice exposto nos 9,4% do PIB e o estoiro da crise grega a esgotar a paciência dos mercados e a aguçar a sua atenção também sobre Portugal, não se quis nem forçar uma coligação maioritária para a legislatura, nem precipitar eleições que clarificassem o quadro político.
Era uma reserva mental geral: haveria eleições antecipadas, mas só em 2011, depois de passadas as presidenciais – como e para quê é que nunca entendi bem. Por que eram as eleições más em meados de 2010 por causa da “crise” e serão boas em meados de 2011 quando a crise é incomparavelmente pior? Por que era mau fazer eleições com os juros da dívida pública ainda na casa dos 3% e já será bom fazê-las quando vão perto dos 8% e a subir? Qual a lógica e o patriotismo disto?
Entrámos, assim, no calvário dos PEC. E a situação piora em todas as frentes: a recessão está aí, as falências sucedem-se, os desempregados estão acima dos seiscentos mil, com concelhos do grande Porto em que a taxa de desemprego supera os 20 por cento, as finanças públicas continuam em estado crítico apesar das constantes doses de cavalo de agravamento tributário e dos cortes a frio nos vencimentos e pensões de reforma. Foi preciso eu chegar aos 57 anos de idade para viver num país em que se corta o salário às pessoas. Foi preciso chegar este governo para termos em Portugal uma taxa de desemprego acima de dois dígitos.
Este PEC IV marca, ainda, o tempo de termos chegado ao cúmulo do completo abandalhamento institucional. O primeiro-ministro e o seu governo já não se preocupam sequer em fingir: desrespeitam o Presidente da República, ignoram a Assembleia da República, as conversas com os partidos são um fingimento, os parceiros sociais são papel de cenário.
Apresentando publicamente o PEC na manhã de 11 de Março, o governo manteve a ficção de um diálogo na Concertação Social com base num quadro que sabia completamente ultrapassado. Tendo reunido com os partidos para analisar o que se passaria na Cimeira extraordinária do Euro, sonegou-lhes o fundamental da posição portuguesa. Tendo estado em peso na Assembleia da República no dia 10 de Março debater uma moção de censura, a todos escondeu o que já tinha decidido. E, cereja em cima do bolo, Sócrates decidiu nada dizer ao Presidente da República, em frontal violação dos seus deveres constitucionais, como denunciei logo nesse dia.
Gosto de ouvir o PS bramar contra os que atacam o sistema parlamentar e apoucam os deputados. Ainda agora Francisco Assis fez vibrantes tiradas em defesa do prestígio do Parlamento. Mas o que pensa o PS que o país pensa quando é o seu líder e primeiro-ministro a tratar a Assembleia como um circo e os deputados como palhaços? O que pensa o PS que o país pensa ao ver o primeiro-ministro na Assembleia a esconder-lhe a verdade do que já decidiu e a manter um debate em torno de uma “realidade” que sabe não existir mais? O que pensa o PS que o país pensa quando o governo faz isto aos deputados, incluindo os do PS, e os deputados, começando pelos do PS, não reagem?
A violação da Constituição é manifesta. O governo responde perante Presidente e Assembleia da República (art.º 190º) e o primeiro-ministro é responsável perante o Presidente da República (art.º 191º, nº 1), estando-lhe atribuída constitucionalmente a competência específica de “informar o Presidente da República acerca dos assuntos respeitantes à condução da política interna e externa do país” (art.º 201º, nº 1, alínea c). Quando o primeiro-ministro vai a Bruxelas apresentar um conjunto de medidas tão gravoso, para visto da chanceler alemã e do Presidente francês, pode escondê-las do Presidente do seu próprio país? Quando o chefe do Governo altera tão brutalmente a estratégia orçamental, pode manter o Presidente da República em absoluto desconhecimento?
Sócrates pôs-se, assim, a jeito para o seu governo ser sumariamente demitido pelo Presidente da República, ao ter posto em causa manifestamente o “regular funcionamento das instituições democráticas” (art.º 133º, alínea g) e art.º 195º, nº 2). É a segunda vez. Da primeira, não foi demitido. E toda a gente acha que, desta vez, também não. Se acontecer assim, acho mal.
Manter tudo quando se golpeou a este ponto o funcionamento regular das instituições seria o pior sinal de fim do regime. Nada se respeita. Ninguém se dá ao respeito. Acabou. E Portugal, que já não tem governo – e, em boa medida, também não tem Assembleia –, ficaria pior se sentisse não ter Presidente.
Precisamos de actos e palavras que protejam a democracia, defendam Portugal e os portugueses, permitam que nos salvemos. Ao precipitar a exposição da crise neste preciso momento, no fio da navalha, entre as cimeiras europeias de 11 e 24 de Março, Sócrates esticou de novo a corda: joga-nos a todos e a Portugal como aposta limite do seu póquer obsessivo. Lança-nos como ficha da sua política de casino. Sempre, sempre no limite. É altura de lhe dizer que já está para além dos limites.
A palavra é do Presidente da República. Só o Presidente, ouvindo os partidos e o Conselho de Estado, poderá estar em condições de poupar o país a que a crise estoire justamente na semana pior – em cima de Cimeira europeia decisiva – e marcar a pauta para o rumo consistente que se seguirá.
Se Sócrates fosse demitido e houvesse espaço de patriotismo no PS, ainda poderia talvez ser procurada uma solução de emergência, de salvação nacional, neste quadro parlamentar – ainda que a margem seja estreitíssima quer pela degradação geral do quadro político, quer pelo pesado precedente criado por Jorge Sampaio. Não sendo assim, a não haver uma intervenção constitucional, patriótica, congregadora, de algum modo impulsionada pelo Presidente da República, a ruptura total está aí e as eleições são inevitáveis.
E, tendo-se tornado inevitáveis, quanto mais cedo, melhor. É uma lástima como em Portugal deixamos chegar as coisas até ao apodrecimento e do apodrecimento, à gangrena.
A saturação das pessoas com a política vem daí. Daí e de não se ver de onde desperte a esperança.
[Texto integral original do artigo publicado no jornal "i" em 13-mar-2011]

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