A primeira queda de Sócrates

Público 2011-03-25  Vasco Pulido Valente

O eng.º José Sócrates resolveu não assistir ao debate de quarta- feira na Assembleia da República. Saiu no princípio e não voltou. O desprezo do primeiro-ministro pela Assembleia da República, que representa constitucionalmente o povo português e de que ele ainda por cima depende, revela o homem. Sócrates nunca foi, nem nunca será um democrata, é um autocrata. Um autocrata incapaz de sofrer a humilhação de ser rejeitado e afastado em público por gente que ele considera inferior. Até numa altura crucial para ele e para o país (já para não falar no PS), a vaidade apagou o respeito pela instituição e pelos mais básicos deveres do cargo que ele exerce. Quem não hesita em fazer uma coisa daquelas não tem com certeza, em privado, princípios que nos possam tranquilizar. Como, de resto, se já constatou.

Verdade que o debate sobre o PEC IV envergonharia qualquer parlamento. Quem assistiu à cena na televisão sabe que tudo aquilo não passou de uma acumulação quase delirante de pequenos comícios: discursos que se repetiam até à náusea e para lá da náusea, insultos, slogans, chantagem e por aí fora, sempre no mesmo tom arruaceiro ou ameaçador. Argumentos, nem um. A Assembleia acabou por se tornar um bom exemplo do que por aí se chama "crispação". Cada seita era uma espécie de ilha, concentrada no seu ódio ao próximo e decidida a não ouvir ninguém. A extrema-esquerda e o PS queriam desacreditar o PSD, o PS queria desacreditar o PSD e a extrema-esquerda e, naquela balbúrdia, só havia uma lógica: a raiva universal ao eng.º Sócrates.

Em dois séculos de governo representativo em Portugal, um único político conseguiu suscitar a profunda aversão que hoje suscita o primeiro-ministro: António Bernardo Costa Cabral, que deu o seu nome ao "cabralismo". É interessante pensar no que (em resumo) um dia lhe disse Fontes Pereira de Melo: "A sua presença (no governo) não ajuda o país, porque o senhor é o problema." Manuela Ferreira Leite, com outros cuidados verbais, não ficou longe de Fontes, quando explicou o voto do PSD. E, se calhar, não se enganou. A remoção definitiva de Cabral trouxe a Portugal um certo sossego. A remoção definitiva de Sócrates talvez também acalmasse as coisas. Mas, para nossa desgraça, Sócrates continua, e continuará, secretário-geral do PS e não tenciona, nem de longe, ficar quieto. Esta história ainda não chegou ao fim.



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