Heróis da retirada
Público 2011-03-03 Pedro Lomba
23 de Fevereiro de 1981. Passaram, há uma semana, 30 anos de um golpe contra a democracia espanhola, um golpe que falhou, mas, talvez porque tivesse falhado, também serviu para a proteger, para a robustecer.
As imagens captadas por uma câmara da Televisão de Espanha permitem, durante largos minutos, reconstruir a cena, bem conhecida. No Congresso de Deputados ultima-se a votação de Leopoldo Calvo Sotelo, que está em vias de ser eleito chefe do Governo em substituição de Adolfo Suárez. Há 24 dias que Suárez se demitiu. Os deputados, sentados, amodorrados, ouvem primeiro um rumor, depois um grito que surgem do lado esquerdo do hemiciclo. "Toda a gente quieta", brada o tenente-coronel da Guarda Civil António Tejero que tinha entrado no Congresso à frente de uma tropa de assalto. Saem balas para o tecto. Os deputados escondem-se por baixo das mesas. Só três pessoas resistem dentro daquele Congresso agachado. Um é o próprio Adolfo Suárez, que se ergue da cadeira. Outro é o seu fiel general Gutiérrez Mellado. O terceiro é Santiago Carrillo. Um gesto. Três gestos.
Acabo de ler o livro do escritor espanhol Javier Cercas Anatomia de Um Instante. Quero dizer que é um livro admirável e com uma não menos admirável tradução em português; ensaio histórico, literário, jornalístico, é difícil arrumá-lo numa só gaveta. E é este gesto de Suárez, de grande coragem física e moral, que Cercas investiga. Não é, diz ele, um gesto temerário, mas de liberdade de quem se opõe ao golpe, mas também de alguém que era o rosto daquela democracia. Um gesto de quem sabe que já está morto, acabado, demitido, que perdeu o poder, mas não perdeu a autoridade.
Por isso, observa Cercas, citando um texto de Hans Magnus Enzensberger, Adolfo Suárez pode pertencer a uma nova categoria de heróis: os heróis da retirada. Os heróis da retirada são os da renúncia, do abandono. De certo têm apenas uma coisa: a ingratidão do povo. O 23 de Fevereiro de 1981 selou a democracia em Espanha, mas também a carreira de um grande político que cumprira o seu destino.
Muito se tem escrito sobre a transição em Espanha, por contraponto com a nossa. Em 1976 o Rei entregou a Suárez a presidência do Governo para que preparasse a democracia. Suárez fê-lo. Mas quase cinco anos depois, diz Cerca, já todos conspiravam contra ele. Conspiravam os jornalistas de direita e de esquerda, os financeiros e os empresários. Toda a classe política do país queria ver Suárez pelas costas. A Igreja, se não conspirava, tinha decidido largá-lo à sua sorte. O PSOE, principal partido da oposição, conspirava contra Suárez; e o seu próprio partido, a UCD. E o Exército, claro. Passados quatro anos, durante todo o ano de 1980, já ninguém queria Suárez, nem o Rei, porque, como mais uma vez sugere Cercas, ele era visto como o homem que soube fazer a democracia, mas não sabia estar em democracia. Era visto como nunca tinha deixado de ser visto. "O moço de recados do Rei", antigo falangista "arrivista do franquismo", um Julien Sorel de província.
O golpe tinha um plano: o tenente-coronel Tejero tomaria o Congresso, o capitão-general de Valência, o general Milan del Bosch, sublevaria a região, o coronel San Martin iria tomar Madrid e o general Armada, homem de confiança do Rei, iria depois à Zarzuela para se afirmar como a solução para um governo de unidade nacional.
Mas fracassou. Foi o Rei que, desconfiando de Armada, liderou o contragolpe. Cercas deixa claro que o 23 de Fevereiro "blindou a Coroa", convertendo a monarquia parlamentar "no único sistema de governo plausível em Espanha".
E Adolfo Suárez, o "moço de recados do Rei", antigo falangista, arrivista, galã de província (repetição de Cercas), que hoje, vítima de Alzheimer, esqueceu tudo? É ele o "político puro", que toda a vida buscou o poder e foi capaz, naquele fim de tarde, de um último gesto digno. A História é dos homens.
Jurista
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