O discurso encantatório
Público 2011-03-17 Helena Matos
O discurso encantatório é incompatível com uma simples hora de bom governo, mas é fantástico para conquistar o poderNós damos. Eles tiram. Não podemos dar tanto quanto gostaríamos -nós por nós daríamos tudo - mas vamos agora dar escolas. Vamos dar uma caixa de correio electrónico a cada português. Vamos apoiar o carro eléctrico, a cultura e os painéis solares. Vamos ter o MIT, os PIN, TGV e muitos Magalhães. E diplomas das Novas Oportunidades para todos.
Quando alguém tem dúvidas, é tratado como um herege e apresentado como um excêntrico. Reage-se sempre atacando: desmente-se categoricamente o que se diz ser absolutamente falso e rotundamente errado e que verdadeiramente só é dito por reaccionarismo, antipatriotismo, bota-abaixismo ou tremendismo.
O tempo é como que acelerado. Leis em catadupa, anúncios que se contradizem, programas que nunca ninguém viu... nada disso interessa, porque aquilo que conta é que não existe tempo para dúvidas. Nunca se pode parar para reflectir.
Foi este o guião de José Sócrates. Ou melhor, foi esta a estrutura do discurso encantatório que lhe permitiu ganhar eleições. O discurso encantatório é incompatível com uma simples hora de bom governo, mas é fantástico para conquistar o poder. Numa primeira fase, a do optimismo, porque as pessoas de facto querem acreditar que não existe diferença entre o anunciado e o possível. Numa segunda fase, que é aquela em que agora nos encontramos, porque essas mesmas pessoas vivem sob o medo de perder o que ainda têm.
Note-se que nesta segunda fase o discurso encantatório é ainda mais perigoso, porque o medo de perder o que já se sabe escasso é um sentimento muito mais poderoso do que o optimismo da conquista. Esse medo da perda é hoje omnipresente nas conversas, sejam elas de rua ou de gabinete, e nos olhos de muitos dos que desfilaram na manifestação do passado sábado.
E sobretudo anos de discurso encantatório tornaram os portugueses um povo domesticado e temeroso de iniciativas. Houve um tempo não muito distante em que os portugueses acreditavam que podiam mudar a sua vida para melhor. Faziam empresas. Emigravam. Acreditavam que o seu destino dependia em boa parte da sua determinação. Agora, após anos e anos de discurso encantatório, sabem que o seu sucesso depende não tanto de si mesmos, mas sim do director-geral, do secretário de Estado, do vereador e do presidente do instituto que vão analisar o seu projecto. Ou então intuem que a sua sobrevivência está nas mãos da funcionária da Segurança Social que lhes anuncia se o sistema aceita ou não a sua inscrição para os apoios cujos beneficiários são cada vez menos.
No dia-a-dia as pessoas passaram a exprimir-se numa língua estranha em que os factos são referidos de forma inversa - as coisas não correm mal, correm sim menos bem - e onde, seja quando testemunham uma agressão no meio da rua ou são confrontados com o apagão do sistema informático aquando das últimas eleições, nunca ninguém assume ser responsável por nada.
O discurso encantatório só perde a eficácia perante a absoluta evidência da realidade. Aí deixa de ser encantatório e passa a patético, como esta semana se constatou durante a entrevista de Sócrates à SIC. Por isso Sócrates precisa de partir rapidamente para campanha eleitoral.
José Sócrates quer ir para eleições não só porque essa é a sua possibilidade de vencer Passos Coelho, humilhar Cavaco Silva e manter o seu poder sobre o PS, mas também porque, agora que a crise já não é passível de ser negada nem justificada pelas circunstâncias internacionais, uma campanha eleitoral é o tempo-espaço-palco que lhe permitirá recuperar o discurso encantatório, desta vez centrado no medo de perder e não no anúncio do dar.
Vamos ter semanas de "nós reduzimos salários mas eles reduzem ainda mais" e de "nós fechamos escolas mas eles querem desmantelar a escola pública". Por isso a saída desta crise não é possível com Sócrates, pois só sairemos da crise quando se assumir que o discurso encantatório é um logro com resultados trágicos para os mais pobres e um perigoso auto-engano para as instituições, empresas e sociedade civil. E Sócrates, seja como primeiro-ministro seja como líder do PS, não existe sem esse discurso. Nem para lá dele. Ensaísta
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