Nos labirintos da religião católica
DN 2011-03-27 JOÃO LOPES
Nestes tempos de política formatada, não é fácil encontrar filmes que lidem com as grandes questões da identidade humana, expondo a sua complexidade e, ao mesmo tempo, escapando a qualquer maniqueísmo para ser servido em debate televisivo. Camino, de Javier Fesser, é um desses filmes: um espantoso retrato interior da tragédia de Alexia González-Barros, uma menina espanhola que faleceu aos 14 anos, vítima de cancro na espinal medula, tendo vivido até final num ambiente de profunda crença católica, aceitando o seu sofrimento como uma dádiva divina.
Lançado em 2008 em Espanha, o filme foi aí pretexto de interessantíssimos debates. Desde logo, porque Fesser, embora dando à sua personagem o nome de Camino (interpretada pela brilhante Nerea Camacho, com 12 anos na altura da rodagem), não estaria autorizado a identificar Alexia na legenda final do seu filme; depois, porque a história de Camino/Alexia coloca em cena os labirintos da religião católica, discutindo as tensões entre o desejo de viver e os leis morais da própria fé; enfim, porque, neste caso, a enunciação dessas leis é indissociável dos valores e regras da Opus Dei.
Claramente enraizado na mais nobre tradição do melodrama familiar, o trabalho de Fesser (também autor do argumento) distingue-se pela capacidade narrativa de escapar a qualquer tentação (a palavra adquire curiosas ressonâncias) de encenar o calvário de Camino como uma luta entre personagens "boas" e "más". Este é, afinal, um filme capaz de colocar em cena a pulsão de prazer inerente a qualquer ser humano, expondo a pluralidade dos seus laços institucionais, familiares ou singularmente afectivos. Por mais desconcertante que isso possa parecer, o tema aglutinador de Camino é a procura dos mais enigmáticos êxtases, escapando ponto por ponto ao hedonismo simplista que, hoje em dia, reduz o prazer aos rituais de consumo de cervejas ou telemóveis.
Tudo isso fez de Camino um importante acontecimento em Espanha, enquadrado por um amplo debate público e, em Fevereiro de 2009, pela consagração nos prémios Goya, arrebatando seis distinções, incluindo a de melhor filme espanhol de 2008. Pois bem, é esse mesmo filme que, agora, com mais de dois anos de atraso, está nas salas portuguesas, lançado com uma "não campanha" que nem sequer soube criar condições mínimas para dar a conhecer a sua existência aos potenciais espectadores... O caso é tanto mais triste quanto, mesmo encarado em termos meramente comerciais, Camino é um objecto de enormes potencialidades. Enfim, lembremos que, salvo melhor opinião, ainda somos um país de raízes católicas... E também que, para além dessa coisa empolgante que é haver eleições para a presidência de um dos três grandes do futebol português, continuam a existir cidadãos portugueses que não se revêem na mediocridade audiovisual que vai (des)organizando a nossa percepção do mundo.
Nestes tempos de política formatada, não é fácil encontrar filmes que lidem com as grandes questões da identidade humana, expondo a sua complexidade e, ao mesmo tempo, escapando a qualquer maniqueísmo para ser servido em debate televisivo. Camino, de Javier Fesser, é um desses filmes: um espantoso retrato interior da tragédia de Alexia González-Barros, uma menina espanhola que faleceu aos 14 anos, vítima de cancro na espinal medula, tendo vivido até final num ambiente de profunda crença católica, aceitando o seu sofrimento como uma dádiva divina.
Lançado em 2008 em Espanha, o filme foi aí pretexto de interessantíssimos debates. Desde logo, porque Fesser, embora dando à sua personagem o nome de Camino (interpretada pela brilhante Nerea Camacho, com 12 anos na altura da rodagem), não estaria autorizado a identificar Alexia na legenda final do seu filme; depois, porque a história de Camino/Alexia coloca em cena os labirintos da religião católica, discutindo as tensões entre o desejo de viver e os leis morais da própria fé; enfim, porque, neste caso, a enunciação dessas leis é indissociável dos valores e regras da Opus Dei.
Claramente enraizado na mais nobre tradição do melodrama familiar, o trabalho de Fesser (também autor do argumento) distingue-se pela capacidade narrativa de escapar a qualquer tentação (a palavra adquire curiosas ressonâncias) de encenar o calvário de Camino como uma luta entre personagens "boas" e "más". Este é, afinal, um filme capaz de colocar em cena a pulsão de prazer inerente a qualquer ser humano, expondo a pluralidade dos seus laços institucionais, familiares ou singularmente afectivos. Por mais desconcertante que isso possa parecer, o tema aglutinador de Camino é a procura dos mais enigmáticos êxtases, escapando ponto por ponto ao hedonismo simplista que, hoje em dia, reduz o prazer aos rituais de consumo de cervejas ou telemóveis.
Tudo isso fez de Camino um importante acontecimento em Espanha, enquadrado por um amplo debate público e, em Fevereiro de 2009, pela consagração nos prémios Goya, arrebatando seis distinções, incluindo a de melhor filme espanhol de 2008. Pois bem, é esse mesmo filme que, agora, com mais de dois anos de atraso, está nas salas portuguesas, lançado com uma "não campanha" que nem sequer soube criar condições mínimas para dar a conhecer a sua existência aos potenciais espectadores... O caso é tanto mais triste quanto, mesmo encarado em termos meramente comerciais, Camino é um objecto de enormes potencialidades. Enfim, lembremos que, salvo melhor opinião, ainda somos um país de raízes católicas... E também que, para além dessa coisa empolgante que é haver eleições para a presidência de um dos três grandes do futebol português, continuam a existir cidadãos portugueses que não se revêem na mediocridade audiovisual que vai (des)organizando a nossa percepção do mundo.
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