Conversa necessária entre o país "à rasca" e a "geração à rasca"

Público 2011-03-11 José Manuel Fernandes
Quem não perceber que vivemos num estado de irritação larvar contra "o Estado a que chegámos" não percebe nada

Parece que padeço de uma doença perigosa. Primeiro, não me irrito solenemente com aquilo a que chamam a "idolatria da juventude". Depois, não fico com comichão quando oiço a música dos Deolinda. Por fim, pecado máximo, não estou nada assustado com os perigos "protofascistas" que espreitam por detrás das manifestações de amanhã, até considero que o seu eventual sucesso pode ser um sinal bem positivo. Pior ainda: incomoda-me a forma quase autista e muito snob como os sinais, mais ou menos espontâneos, de revolta que se têm acumulado nas últimas semanas têm sido recebidos em certos sectores.
Como sempre, é necessário perceber o essencial, e o essencial, neste preciso momento, parecem-me ser a multiplicação de manifestações diversas de profunda e radical irritação com "isto". E isto, parafraseando Salgueiro Maia, é "o estado a que chegámos". É uma irritação que se sente por todo o lado (basta andar na rua), que tem o Governo e Sócrates no seu centro, mas que é muito mais difusa - às vezes inclui o PSD, outras estende-se a toda a classe política, outras ainda abomina todas as corporações, dos juízes aos sindicatos. Basta ver como os vários espaços de debate abertos aos cidadãos anónimos estão mais violentos e ácidos do que nunca.
A vitória dos Homens da Luta no Festival da Canção é apenas a última manifestação deste estado de espírito inorgânico. Não creio que, ao contrário do que já vi ser sugerido, o triunfo de Jel e seus amigos se tenha ficado a dever a uma orquestração partidária - o tempo em que o PCP mobilizava os militantes para votarem no Paulo de Carvalho já passou e o Bloco não é o PCP. Os Homens da Luta venceram pelos motivos inversos que incomodaram aquela espécie de "brigada do reumático" do nosso actual regime que se sentava na plateia do Teatro Camões: porque souberam ser a carta fora do baralho, ser os "de fora", os não comprometidos, os desbocados.
Há quem olhe para tudo como um simples fait--divers, tal como antes olharam para a canção dos Deolinda. Não sou capaz de me integrar nesse grupo. Quando ouvi pela primeira vez a música (no YouTube, onde havia de ser?), percebi que ela tinha qualquer coisa de especial, pois tocava no nervo sensível de muita gente. Por isso, logo a 4 de Fevereiro, quando ainda nem se falava da manifestação de amanhã, escrevi aqui um texto sobre "Tudo o que espoliámos à "geração sem remuneração"" (quem quiser pode consultá-lo aqui: http://www.facebook.com/note.php note_id=10150104369774208). Pareceu-me então, como me parece hoje, que os mais novos se encontram numa situação de injustiça relativa, que começam a aperceber-se disso e que reclamam explicações e soluções. Infelizmente muita gente preferiu continuar a olhá-los do alto da burra e proclamar: aquela geração é mesmo "parva".
O que se está a passar diante dos nossos olhos pode ser uma batalha política crucial para o nosso futuro. Graças aos Deolinda, aos Homens da Luta e à atenção que a comunicação social começou a dar aos problemas desta geração, os "apolíticos" e "desinteressados" que até nem costumam ir votar começaram a discutir política e a debater soluções. Quem duvidar deve visitar a página do evento no Facebook ou ler os textos que o PÚBLICO tem vindo a disponibilizar online. Leiam ao menos o texto que abre a longa série, de Pedro Loureiro, um gestor de 34 anos de Coimbra.
Como a natureza tem horror ao vazio, o Bloco de Esquerda tratou de aproveitar a onda juvenil para colocar a discussão e o protesto nos seus terrenos preferidos, em especial o da precariedade. Só que o problema não é a precariedade, ou pelo menos a precariedade tal como o Bloco a entende. Nem a solução passa por criar artificialmente "direitos" em nome de uma ilusão de igualdade. Primeiro, porque se algumas formas de precariedade existentes no mercado de trabalho são imorais, a verdade é que elas são o reverso da medalha de normas legais que são demasiado rígidas e facilitam a vida quer aos instalados, quer aos beneficiários de salários demasiado elevados para aquilo que fazem (Portugal tem o leque salarial mais desigual de toda a OCDE). Depois porque, nos tempos que correm, todos os empregos tendem a ser algo precários, uma vez que a economia está em permanente mutação e as organizações não deviam poder ossificar, como sucede demasiado em Portugal. Os mais novos sabem bem do que falo, porque conhecem quem ocupa os lugares que lhes tapam os empregos ou as progressões, e sentem que isso é muitas vezes mais injusto do que um contrato a termo ou em regime de profissão livre (também há recibos verdes verdadeiros, convém não esquecer).
Numa altura em os que têm menos de 30/35 anos estão especialmente despertos para discutir as soluções para os seus problemas, o combate político tem de passar por lhes dizer que essas soluções não incluem mais Estado, mais empregos no Estado, mais "garantias" fictícias ou mais regulamentos e leis, antes implicam deitar abaixo as barreiras que minam a solidariedade intergeracional. Não faz sentido, por exemplo, distribuir subsídios de renda - mas faz todo o sentido acabar de uma vez por todas com as regras que impedem o bom funcionamento do mercado de arrendamento. Tal como não faz sentido diminuir as indemnizações por despedimento para os novos contratos e não tocar nas regras dos contratos já existentes. Tal como é injusto ter penalizado como se penalizou, em contribuições para a Segurança Social, os contratos de estágio.
Joaquim Vieira estranhou, numa nota que escreveu no Facebook, que "a geração que nos anos 70 defendeu o totalitarismo, o estalinismo, o maoísmo e os khmers vermelhos (e na qual me incluo) critique o inconformismo e a? irreverência da geração jovem. (...) A geração instalada devia fazer a sua autocrítica antes de atacar a geração à rasca". Eu, que faço parte da mesma geração, subscrevo a sua estranheza (só não estranho, infelizmente, a forma desonesta como alguns comentadores televisivos trataram de colar à "geração à rasca" o programa de um outro movimento anticlasse política...).
Felizmente nem todos estarão distraídos ou "horrorizados". Basta lembrar o muito que se comentou esta semana se o Presidente da República, ao desafiar os jovens a fazerem ouvir a sua voz - "Este é o vosso tempo" -, ou ao dizer-lhes para não se acomodarem nem resignarem, não estaria a cavalgar, ou a "surfar", a onda da manifestação. Foi uma especulação triste, pois um mínimo de memória permitiria recordar que o tema da juventude é recorrente em Cavaco Silva. Para além disso, o Presidente apenas fez o que é normal um agente político fazer: veio ao terreno debater as soluções e indicar caminhos. Por isso ele não falou de precariedade, mas de empreendorismo. Não falou contra a classe política, antes de "um novo modo de acção política que consiga atrair os jovens e os cidadãos mais qualificados". E por aí adiante.
Parece que no país onde alguns se licenciam ao domingo custou ouvir falar "de uma cultura onde o mérito, a competência, o trabalho e a ética de serviço público sejam valorizados". E que entre os perdulários não se gostou da passagem sobre "impedir que aos jovens seja deixada uma pesada herança, feita de dívidas, de encargos futuros, de desemprego ou de investimento improdutivo".
Este país que está, todo ele, "à rasca", não pode, não deve, olhar sobranceiro para a "geração à rasca". Nem entregá-la de mão beijada aos defensores de soluções ultrapassadas. Até porque, se não for essa geração, que já vai tendo alguma percepção da necessidade de arriscar e inovar, a mudar o país, não serão seguramente os que já providenciaram o seu próprio conforto que o farão. Jornalista

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