O sangue, os preconceitos e o Lote 810536
Público, 20100415 Helena Matos
O Lote 810536 foi apresentado como responsável pela contaminação de vários hemofílicos portugueses com o vírus da sida
AAssembleia da República (AR) aprovou recentemente uma recomendação que preconiza ao Governo a "adopção de medidas que visem combater a actual discriminação dos homossexuais e bissexuais nos serviços de recolha de sangue". Em reacção a esta decisão que na AR que teve um largo apoio - foi votada favoravelmente por todas as bancadas parlamentares à excepção da do CDS-PP, que se absteve -, o presidente do Instituto Português do Sangue (IPS), Gabriel Olim, declarou ao Jornal de Notícias: "A proposta [do BE] choca com tudo o que é realidade internacional. Quero saber no que é que se basearam para elaborar essas recomendações."
À semelhança da esmagadora maioria dos portugueses nada sei sobre dádivas e transfusões de sangue, mas sei que é habitual faltar sangue nos hospitais e que, desde que se pronuncie o termo discriminação, os responsáveis políticos e administrativos tendem a defender uma coisa e o seu contrário só para não serem rotulados como discriminadores: veja-se o recente exemplo dos serviços de saúde britânicos em que, por causa das infecções hospitalares, foi imposto aos funcionários hospitalares o uso de mangas completamente arregaçadas e se proibiram peças de joalharia. À excepção dos funcionários sikh, que continuaram a usar várias pulseiras, e das funcionárias muçulmanas, que mantêm os braços tapados. Por fim sei também que há aproximadamente 25 anos chegava a Portugal o Lote 810536 do Factor VIII, um concentrado do elemento do plasma humano usado no tratamento dos hemofílicos. Este lote viria a ser apresentado como responsável pela contaminação de vários hemofílicos portugueses com o vírus da sida.
O então presidente do IPS, Pedro Branco, tal como Leonor Beleza, ministra da Saúde nesse período, e outras oito pessoas, foram acusados não de negligência mas sim de algo muito mais grave. Mais precisamente, segundo o Ministério Público, teriam cometido, em co-autoria, um crime de propagação de doença contagiosa punível em sete anos e seis meses de prisão. O despacho da acusação afirmava, sem sombra de dúvida, que todos os arguidos "sabiam que os concentrados de Factor VIII eram produtos de alto risco para a transmissão da sida".
Leonor Beleza, tal como os restantes arguidos, foi pronunciada no dia 29 de Setembro de 1995. Já então não era ministra e o próprio PSD daí a dois dias perderia as eleições legislativas. Saiu do tribunal sob as ameaças e as vaias de quem lhe chamava "Assassina! Assassina!"
Vale a pena, em 2010, ler o livro que Daniel Proença de Carvalho, advogado encarregue da defesa de Leonor Beleza, então publicou. Obviamente porque o livro é uma reflexão sobre os dilemas das competências políticas dos ministros em ministérios onde as decisões técnicas são complexíssimas - tinha ou devia ter a ministra a obrigação ou sequer a possibilidade de saber que lotes de plasma estavam a ser administrados aos hemofílicos? Lendo o livro não se fica propriamente tranquilo nesta matéria. Mas é sobretudo nas declarações dos técnicos e muito particularmente no parecer que o prof. António Coutinho fez a pedido da defesa de Leonor Beleza que encontramos aquilo que era o cerne da questão naquela época, tal como o é agora: "Todo o acto médico comporta um certo número de riscos e a sua prossecução deve necessariamente pesar as respectivas probabilidades dos efeitos benéficos para o doente e das complicações associadas. A responsabilidade primeira no acto médico é a do clínico que o administra. Só depois se devem invocar, e por ordem de envolvimento, as responsabilidades da hierarquia hospitalar, a dos serviços administrativos correspondentes e, finalmente, a responsabilidade dos políticos que definem e implementam as políticas de saúde."
Aquilo que a AR pretende em 2010 é inverter esta ordem de responsabilidades sabiamente definida por António Coutinho, colocando em causa a própria autonomia técnica de que actualmente goza o Instituto do Sangue.
Duas décadas e meia após o Lote 810536 ter chegado a Portugal os testes ao vírus da sida ou à presença dos seus anticorpos terão evoluído e a própria noção de grupo de risco também terá sido alterada, donde pessoalmente ter dúvidas sobre se faz sentido o IPS manter uma posição de princípio sobre a exclusão de dadores homossexuais, por muito poucos que estes sejam. Mas não me parece que este tipo de decisões possa emanar da AR. A eliminação das discriminações ou daquilo que os movimentos políticos entendem por tal tem produzido um número apreciável de casos anedóticos. Aliás, em matéria de dádivas de sangue existem outras disposições que também se podem considerar discriminatórias: os homens poderem doar sangue de 3 em 3 meses e as mulheres apenas de 4 em 4 meses. Segundo o IPS tal destina-se a salvaguardar a saúde de quem dá sangue, mas à luz das teses da AR pode não ser necessariamente assim. Contudo é preciso termos em conta que este proselitismo da antidiscriminação pode também produzir erros graves e este pode ser um caso desses.
Em 2010 tal como em 1985 manda o princípio do bom senso que, em caso de dúvida, se proteja sempre o mais frágil e em matéria de sangue o mais frágil é sempre quem precisa de o receber. Logo esta questão do sangue precisa de ser muito mais discutida pois a AR não pode interferir em actos médicos; o IPS precisa de explicar aos portugueses como escolhe os dadores num país que tem falta deles - em Fevereiro deste ano o próprio presidente do IPS fez um apelo às dádivas de sangue pois as reservas estavam abaixo do limiar de segurança - e, por fim, quem, homossexual ou heterossexual, tem comportamentos de risco tem de assumir que não pode transferir para os outros as consequências dos seus actos. Ensaísta
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