Coisa tramada a memória

Helena Matos

Público, 2010.04.30

Quando José Pedro Aguiar Branco afirmou na Assembleia da República "O moralismo ideológico cega-nos e faz-nos esquecer o óbvio" e perguntou porque não haveria de gostar de Zeca Afonso a parte que se senta à direita do hemiciclo estava a recuperar uma pergunta com 35 anos. De facto há 35 anos, mais precisamente em Abril e Maio de 1975, discutia-se se o PPD podia ou não cantar a Grândola. O autor da canção, Zeca Afonso, achava que não e escreveu-o claramente num texto que enviou para as redacções. Aí indignava-se com o que definia com o "abuso ou despudor" da canção "Grândola, Vila Morena" ter sido cantada num comício promovido a 11 de Maio desse ano pelo PPD, partido que diz ter como dirigentes "defensores da censura fascista e continuadores da ordem colonial". Gera-se em seguida uma polémica em que esta apropriação da "Grândola, Vila Morena" por parte do PPD é definida a dado momento como uma situação ridícula à qual era urgente colocar um fim. O fim não se sabe como chegaria porque meses depois a Revolução acabou como começou: ou seja não se percebeu exactamente como nem quando.

O PCP assegurou tranquilamente por via constitucional e pelo controlo da administração pública o que nem sequer era certo que conseguisse por via revolucionária, a extrema-esquerda foi devidamente neutralizada e a "Grândola, Vila Morena" foi-se ouvindo cada vez menos. A não ser naqueles espectáculos-rituais em que os outrora jovens cantores da intervenção, agora cada vez mais velhos, dão os braços e se embalam, cantando-a, como quem regressa a um tempo que já não é o seu e que, embora nunca o afirmem, parecem aliviados por ter terminado.

Curiosamente a questão de quem pode cantar, em Portugal, "Grândola, Vila Morena" voltou a colocar-se nas últimas presidenciais mais precisamente quando ela foi cantada em Grândola pelos apoiantes do então candidato Cavaco Silva. As reacções não se fizeram esperar e como que nos devolviam a um PREC embora em versão verbalmente light: "O séquito de Cavaco Silva deve ter feito figas atrás das costas enquanto cantava o "Grândola, Vila Morena", ontem numa sessão de propaganda eleitoral naquela cidade alentejana. Para muitos deles, a começar pelo candidato, deve ter sido a primeira vez na vida. Ainda os veremos a cantar a Internacional, no Barreiro. Não haverá limites para o oportunismo eleitoral?" – perguntava Vital Moreira no blog Causa Nossa. Parafraseando Aguiar Branco "O moralismo ideológico cega-nos e faz-nos esquecer o óbvio". Mas para lá do óbvio mais imediato que passa por, como respondeu a Zeca Afonso uma leitora do "Diário Popular" em Maio de 1975, o povo ter o direito de cantar o que quer sem ter de pedir autorização quiçá por escrito a quem, por ironia, tanto falava em seu nome, resta-nos um outro óbvio ou, melhor dizendo, o tremendo equívoco em que baseia a nossa democracia. Equívoco esse que se quisermos puxar um pouco mais pela memória nos leva não ao PREC mas sim à I República e ao seu célebre: o País é para todos, mas o Estado é dos republicanos. Esta concepção do Estado enquanto coisa nossa por parte dos partidos torna o Portugal de 2010 muito mais próximo dos vícios I República do que dos abusos do PREC. A memória não nos faz melhores e nem sei se nos fará decidir melhor. Mas é de facto uma coisa tramada.

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