Bento XVI, o mal-amado

Público, 2010.04.22 Esther Mucznik
Acusam-no quando ele é o primeiro a denunciar abertamente a pedofilia. É a política de culpar o mensageiro pela mensagem

Como vê o pontificado de Bento XVI e a sua atitude face ao diálogo inter-religioso? Como avalia a resposta do Papa à crise da pedofilia? Como é vista a visita papal pelas confissões não católicas? Acha que a tolerância de ponto discrimina os não católicos? Estas são algumas das questões com que nós - os "outros" - somos diariamente "assediados" por diversos órgãos da comunicação social.

O caminho não tem sido fácil para Bento XVI depois do longo pontificado de João Paulo II, dado o contraste absoluto entre os dois estilos: João Paulo II era carismático, gostava das multidões, tinha o dom da palavra certa no momento certo. Bento XVI fala através da escrita, gosta do isolamento necessário à reflexão. João Paulo II foi um papa missionário, um homem da Guerra Fria e do combate contra o comunismo. Bento VI, alemão e ocidental, preocupa-se sobretudo com o esvaziamento religioso do Ocidente, com o relativismo e a perda de valores, com a "forma mais subtil de ditadura que obriga a pensar e a agir como todos os outros". A meu ver, esta preocupação é actual e urgente.

No que respeita às relações com o judaísmo, tem havido alguns percalços: o levantamento da excomunhão do bispo negacionista Richard Williamson, "apenas 200 mil a 300 mil judeus morreram nos campos de concentração, mas nenhum nas câmaras de gás", o processo de beatificação de Pio XII antes da abertura de todos os arquivos do Vaticano, a insistência na oração para que os judeus reconheçam em Jesus "o salvador de todos os homens". Mas nada disto apaga o essencial: o compromisso de Bento XVI de repúdio "incondicional" do anti-semitismo e da negação do Holocausto por parte da Igreja, assim como o de avançar no caminho de João Paulo II nas relações católico-judaicas, compromisso assumido logo no início do seu mandato na sinagoga de Colónia e de novo reiterado várias vezes, a última das quais já em Janeiro deste ano na sinagoga de Roma.

O passado nunca se apaga, nem se esquece. Mas a memória não é ressentimento, não pode ser um obstáculo à reconciliação. Pelo contrário, e como referiu Bento XVI, "a lembrança do passado permanece para as duas comunidades como um imperativo moral e uma fonte de purificação dos nossos esforços de orar e trabalhar para a reconciliação..." Em 1986, João Paulo II foi o primeiro Papa a entrar numa sinagoga. É preciso ter alguma visão histórica para avaliar a profunda revolução operada nas últimas décadas nas relações judaico-cristãs. Apesar dos avanços e recuos inevitáveis.

Bento XVI e a Igreja atravessam actualmente um momento difícil, "a maior crise da Igreja Católica dos últimos 100 anos", nas palavras de António Marujo. Não irei alongar-me sobre o que é, ou devia ser, óbvio: que a pedofilia é um crime hediondo e que praticado por pessoas da Igreja Católica ou de qualquer outra religião é ainda mais grave, tendo em conta a missão ética de que se reclamam e a confiança que, em princípio, nelas deposita a sociedade. Trata-se, pois, de um duplo crime que, independentemente da punição interna à instituição religiosa, tem de estar sujeito como qualquer outro à justiça civil. É, pois, perfeitamente legítima a revolta das vítimas, dos seus familiares e da sociedade de uma forma geral face às tentativas de ocultação do crime.

Em contrapartida, é abusivo condenar a Igreja no seu todo e centrar o alvo em Bento XVI. Para muito boa gente, esta é uma ocasião ideal para um ajuste de contas com a Igreja e com este Papa mal-amado, acusando-o de ser responsável por esconder o crime, quando na realidade ele é o primeiro a denunciá-lo abertamente. É a política de culpar o mensageiro pela mensagem. Pressionado ou não pelas circunstâncias, o certo é que tem sido Bento XVI a reconhecer publicamente e a pedir perdão às vítimas e é neste seu pontificado que, em carta aberta aos sacerdotes de todo o mundo divulgada no dia do 5.º aniversário da sua eleição, o Va- ticano reconhece que foram cometidos "horríveis e gravíssimos delitos de abusos sexuais contra menores... e que os culpados deverão responder perante Deus e perante os tribunais, também os civis". Repito: o pedi- do de perdão não sara as feridas, nem apaga o mal fei- to. Mas é um passo essencial para uma mudança de comportamento. É ele que poderá permitir a separação do trigo e do joio.

António Marujo afirma que a Igreja Católica "tem de ser a primeira a reflectir o porquê dessa aversão (à Igreja) e a procurar as razões no seu interior". Esta é de facto a questão essencial. Como judia, acho que há na história da Igreja muitas razões para essa aversão, mas também lhe reconheço, nas últimas décadas, uma capacidade autocrítica, sem igual nas outras religiões. O que me leva a pensar que as razões dessa aversão não se situam apenas no interior da instituição, mas também no seu exterior: no esvaziamento religioso do Ocidente europeu, na perda de referências e no relativismo cultural que levianamente contribui para debilitar paulatinamente o chamado (e bem) mundo livre. Goste-se ou não, a Igreja Católica é uma referência desse mundo.

Não sou católica, mas vejo com preocupação a fragilização de uma instituição que é um dos pilares daquilo a que execramos chamar de "civilização ocidental". Porque não há vazios e o regresso da barbárie é sempre possível.
Investigadora em assuntos judaicos (esther.mucznik@netcabo.pt)

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