Sobre os quadros de Miró e a tolerância

João Carlos Espada | Público | 10/02/2014

A "arte de associação" exprime e estimula uma cultura cívica de iniciativa, variedade e tolerância.
Já quase tudo terá sido dito sobre a magna questão da venda ou não venda dos agora célebres 85 quadros de Miró. Um ponto, todavia, pode talvez ser acrescentado: por que razão não surgiu um vasto movimento de donativos para comprar os referidos quadros?
Já quase tudo terá sido dito sobre a magna questão da venda ou não venda dos agora célebres 85 quadros de Miró. Um ponto, todavia, pode talvez ser acrescentado: por que razão não surgiu um vasto movimento de donativos para comprar os referidos quadros?
Ouvimos incessantes declarações inflamadas sobre a decisiva importância cultural de manter os quadros em Portugal. A acreditar nas reportagens dos jornais, rádios e televisões, um vastíssimo número de portugueses seria indubitavelmente a favor de manter a colecção entre nós. A ser assim, seria natural que tivesse emergido um poderoso movimento de pequenos, médios e maiores donativos com vista a adquirir a colecção, ou, pelo menos, parte dela. Tanto quanto sei, esse movimento não existiu e a proposta não foi sequer mencionada. Este fenómeno dá que pensar e merece ser pensado.
Subjacente a este paradoxo — tanta gente acha urgente manter os quadros em Portugal, mas ninguém quer contribuir para os comprar — está uma cultura política profundamente estatista. Tudo o que é importante deve ser pago pelo Estado, isto é, pelo dinheiro dos contribuintes alocado por decisões políticas. Em contrapartida, aqueles que consideram importante promover um determinado objectivo nunca se lembram de serem eles próprios a tentar promovê-lo.
Não é difícil encontrar inúmeros exemplos recentes desta atitude estatista. Nos últimos meses, assistimos a um regresso do estilo revolucionário do PREC a propósito do famoso "corte brutal" das bolsas da FCT. Mas não ouvimos qualquer proposta para diminuir a dependência das instituições de investigação relativamente a verbas governamentais. Também as universidades protestam contra a redução da sua parte do Orçamento do Estado. Mas também não ouvimos qualquer proposta para aumentar as receitas próprias, designadamente através do aumento das propinas — as actualmente cobradas são puramente simbólicas — e da criação de um vasto sistema de bolsas de estudo para quem precisasse.
Vários analistas observaram certeiramente que esta atitude gera um despesismo estatal que tem estado na base da irresponsabilidade das nossas finanças públicas. Essa irresponsabilidade não é fruto exclusivo da irresponsabilidade dos políticos. É em grande parte produto do clima geral do país, em que cada interesse ou opinião particular exige do Estado o respectivo financiamento.
Mas há outra dimensão, porventura mais grave, desta irresponsabilidade estatista: ela conduz à radicalização sectária da vida política e ameaça a tolerância indispensável à vida democrática — ameaça o apropriadamente designado princípio de live and let live.
Se tudo o que é importante devesse ser financiado pelo Estado, é fácil perceber que não haveria dinheiro para financiar tudo. Isso significa que escolhas mutuamente exclusivas criariam um jogo de soma nula ou mesmo negativa: o que uns ganham será o que os outros perdem. A luta pela captura de rubricas no Orçamento do Estado tornar-se-ia uma questão de vida ou de morte para indivíduos, instituições e modos de vida dependentes exclusivamente das verbas do Estado.
Vários autores sugerem que as cíclicas crises das democracias continentais, designadamente entre as duas grandes guerras do século XX, tiveram aqui um poderoso factor explicativo. Guerras civis de classes foram geradas em torno da captura de dinheiros públicos. Quando esses dinheiros escasseiam, facções subsidiadas rivais acusam-se mutuamente e sem quartel. O espaço público das regras de civilidade e fair-play definha, até que um ditador de um dos lados toma o poder para calar o outro lado.
Tocqueville captou este problema antes de tempo, na década de 1830, e observou a solução que espontaneamente emergira na América: a sociedade civil, ou a "arte de associação dos americanos". Disse ele: "Os americanos associam-se para dar festas, fundar seminários, construir albergues, erguer igrejas, divulgar livros, enviar missionários para os antípodas; e é também assim que criam hospitais, prisões e escolas. Desde que se trate de evidenciar uma verdade ou desenvolver um sentimento através de um grande exemplo, ei-los que se associam. Sempre que, à cabeça de um novo empreendimento, possais ver em França o Governo e em Inglaterra um aristocrata, podeis estar certos de que nos Estados Unidos encontrareis uma associação".
É importante perceber as consequências desta "arte de associação". Elas não residem apenas em aliviar a pressão sobre o Orçamento do Estado. A "arte de associação" exprime e estimula uma cultura cívica de iniciativa, variedade e tolerância. Muitas iniciativas diferentes, frequentemente rivais, podem florescer e coabitar sem guerra civil — isso é possível porque basicamente cada uma depende dos seus próprios apoiantes, não da imposição coerciva sobre os impostos e a opinião dos outros.

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