Jogos perigosos

Inês Teotónio Pereira
ionline | 1 Fev 2014
Ainda não sei o que é mais assustador: se esta banalização da violência aos dez anos, se a banalização do silêncio. Sei que as duas juntas são certamente explosivas
Não há nenhum remédio no mundo que neutralize as crianças tão rapidamente e de forma tão duradoura quanto os computadores, os tablets, os telemóveis ou as consolas. Nada. Não há nada que se possa vender na farmácia que tenha efeitos mais eficazes que estas armas tecnológicas. A verdade é que a informática e a tecnologia deram, neste capítulo, um bigode à indústria farmacêutica. Além disso, os jogos que viciam os nossos queridos meninos não têm efeitos secundários desagradáveis como náuseas, diarreia, dores de cabeça, insónias ou qualquer outro sintoma deste tipo. Os jogos nem sequer têm bula, quanto mais estas maleitas todas.
Toda esta tecnologia tem também uma enorme vantagem para os pais: sossego. Por exemplo, nós vamos ao café com um filho de seis anos e queremos passar uma boa meia hora com os amigos a pôr a conversa em dia. Ora, toda a gente sabe que as crianças, tal como o leite, têm um prazo de validade reduzido se estiverem num café (assim como o leite fora do frigorifico). Temos, portanto, um desafio: manter a criança sossegada para podermos beber o café em sossego. Ora, dantes, nós, pais, resolvíamos ou atenuávamos este problema enchendo a criancinha de bolos, doces, rebuçados, gelados, ou oferecíamos a nossa agenda como sacrifício para ela se entreter a pintar algumas imitações de Miró, neutralizando desta forma a cria. Enquanto a criança se lambuzava e torturava a nossa agenda, nós tínhamos sossego. Mas isso era dantes. Agora, o mundo evoluiu. Agora, qualquer ida ao café exige a presença de um smartphone ou de um tablet que possa entreter a criança. Hoje, qualquer pai ou mãe consegue passar uma manhã inteirinha num café, num restaurante ou até num museu de arte contemporânea, acompanhado por um exército de crianças, desde que esse exército esteja munido de tecnologia. As crianças entram em modo de hibernação quando sujeitas ao "candy crush", por exemplo.
E se é assim num café, com simples telemóveis, ainda mais intenso é em casa. Nos dias de hoje, nós podemos ir ao cinema e voltar sem qualquer preocupação que as crianças continuam exactamente na mesma posição em que as deixámos, a jogar um qualquer jogo que tem o condão e o poder de as hipnotizar. É assustador.
Pior ainda é se tivermos a coragem e a paciência de ir ver quais os jogos que eles jogam (ou, no caso dos meus, que gostavam de jogar). Os jogos que estão no top dos mais vendidos (excluindo os de futebol), ou seja, os mais populares, são interditos a mães mais sensíveis. O objectivo destes jogos é sempre matar alguém. É uma regra básica: matar outras pessoas. Jogo em que não se mate alguém está condenado aos últimos lugares da tabela, à prateleira dos jogos mariquinhas. Depois existem alguns mais leves, dentro da categoria dos populares, porque só se matam os maus e em que existe a opção de "não aparecer o sangue"; nos jogos mais impressionantes, o personagem principal (os nossos filhos) mata, rouba, tortura, arranca cabeças, e o sangue não é mais do que um pormenor. O ritmo é, normalmente, alucinante e os gráficos são tão reais que um dos meus filhos já teve a lata de defender a tese de que estes filmes "até são educativos porque nós conhecemos as cidades por onde o assassino passa. Estamos a falar de cultura geral, no fundo". Ainda não sei o que é mais assustador: se esta banalização da violência aos dez anos, se a banalização do silêncio. Sei que as duas juntas são certamente explosivas.

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