Já tenho saudades

Miguel Esteves Cardoso | Público | 02/02/2014

A tristeza está tão próxima da alegria como a vida vivida está da morte imaginada.

Cada vez mais se aproxima o tempo da felicidade vivida da saudade dela. Não só já tenho saudades de ontem, porque já passou, como começo a ter saudades das coisas enquanto estão a acontecer, por saber que vão acabar e ser capaz, sem querer, de pressentir as saudades que vou ter daqueles momentos, enquanto conseguir continuar a lembrar-me deles.
Mesmo na cozinha, quando a Maria João e eu estamos a lavar louça, rindo e namorando e discutindo, ocorre-me cruelmente, enquanto ainda lá estou, que será daquela ocasião, só aparentemente banal, que teremos saudades quando dermos, de repente, valor à deliciosa ilusão da banalidade quotidiana.
Não é quotidiana. É rara. Um momento sem angústia, sem impossibilidade ou sem sacrifício (ou sem a dor não só de existir como a de estar cá, como corpo fisicamente doloroso) parece-se cada vez mais com a alegria.
É por esta razão que Schopenhauer é uma paixão da juventude. O prazer não é a ausência da dor. O prazer é um prazer que contém a tristeza e a dor de um dia acabar. A vida dói não porque acaba mas porque continua.
Ainda está a acontecer e já tenho saudades: as coisas e as saudades acontecem enquanto podem e ocupam o lugar da vida, da razão e do pensamento. Para não falar no sentimento que, ao contrário do que se espera e quer, impera sempre e prevalece.
A tristeza está tão próxima da alegria como a vida vivida está da morte imaginada. Vivemos. Morremos. É pena que estes dois verbos estejam associados.

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