Liberdade, igualdade, amor
JOÃO CÉSAR DAS NEVES , DN 20140224
Quando a política se mete na família, perdem as duas. Aí o sonho revolucionário de mundo novo ameaça até a humanidade.
O nosso tempo vive na ânsia da vida ideal, sempre prometida mas negada. A atitude de fundo, celebrada em romances, filmes e conversas, é repúdio pela existência em nome de utopias. Origem e símbolo desta orientação é a libertação do antigo regime na revolução britânica de 1688, americana de 1776, francesa de 1789 e seguintes. Essas vitórias retumbantes contra ordens vetustas e injustas são sucessivamente encenadas em cada geração em novos temas. É por isso que condutas negativas de rebeldia, inconformismo e revolta são hoje estimadas, criticando-se valores de autoridade, segurança, ordem. Só que as velhas epopeias não funcionam nos complexos temas íntimos.
Nas revoluções primitivas, a questão era apenas eliminar a opressão e impor paridade nos cidadãos. Nessas lutas de classe é fácil que liberdade e igualdade andem juntas. Como a injustiça vem da privação de direitos, o derrube da opressão gera simultaneamente autonomia e equidade. Só a fraternidade, terceiro princípio da revolução, acabou sacrificada nos sangrentos tumultos.
Quando a sociedade, com direitos políticos estabelecidos, passou para a área económica, ficou mais evidente a discrepância entre os três princípios. De facto, no jogo produtivo, a liberdade de empresa e mercado cria forte desigualdade. Assim nasceu a brutal divisão dentro dos vencedores das revoluções políticas originais: os girondinos liberais defendem a liberdade sacrificando a igualdade, enquanto os jacobinos socialistas privilegiam a igualdade a troco da liberdade. Este combate cultural tornou-se militar e matou a fraternidade planetária. Em certos passos, o mundo novo da revolução caiu abaixo da ordem do antigo regime.
Ultimamente, as coisas serenaram num equilíbrio democrático entre Estado igualitário e liberdade de mercado que, não sendo perfeito, é satisfatório. Permanecendo terríveis crises e disparidades, já não é do sonho de um mundo novo que se espera a solução. Os esforços são de correcção, não revolução. As discussões político-económicas, que tanto apaixonaram os nossos pais, são hoje sumamente desinteressantes. Claro que esse modelo prudente está longe de ser universal, mas os antigos mitos extremistas parecem momentaneamente exorcizados.
Isso cria um vazio na presente geração. Que sonhos edificar? Onde estão os tiranos a abater? Como os jovens de hoje, tão idealistas como os antigos, desprezam combates partidários ou mercantis, a luta cultural deslocou-se para questões de sexo e limites da vida. Hoje, as verdadeiras divisões sentem-se nos temas familiares e existenciais.
É curioso como esses debates mantêm obsessivamente os tons, as atitudes e os modelos das antigas lutas e revoluções. Vêem-se os conceitos, as lógicas e os métodos que os antigos aplicavam à nobreza, escravatura, pena de morte, proletariado ou racismo, utilizados em assuntos eróticos e hospitalares. O direito ao aborto e à eutanásia tomam o lugar do direito ao voto; a emancipação de mulheres ou jovens vem na vez dos escravos; o doente terminal ou o homossexual surge na posição do operário ou negro. Casamento é contrato; adopção, sociedade.
Como os problemas são novos, a reprodução simplista de técnicas não funciona. O trio liberdade, igualdade e fraternidade, que mal resistiu na revolução política e se rompeu na económica, fica anómalo na intimidade, reino do amor. Dentro da fraternidade familiar, liberdade e igualdade tomam sentidos estranhos. Por isso, divórcio, aborto ou eutanásia só retoricamente libertam; de facto, matam. Fora da metáfora não existe igualdade entre jovem e velho, homem e mulher, casamento e união de facto, pais e filhos, amor conjugal e promiscuidade, sexo e perversão.
Fazem-se prodígios de manipulação para negar evidências, mas é ridículo tentar recriar velhos mitos de progresso e revolução em campos privados, naturais e imutáveis. A família é o que sempre foi e será. Ela constitui o verdadeiro mundo sempre novo.
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