A ocultação de interesses
JOÃO CÉSAR DAS NEVES, DN, 2014-02-7
O presidente da RTP referiu recentemente (Notícias TV, 31 de Janeiro) que a empresa tem trabalhadores que não fazem nada. Pouco depois um jovem perguntou-me como se conseguia tais empregos, que considerava adequados para si. Expliquei-lhe que se assinava um contrato de trabalho, mas fui logo interrompido. "Contrato de trabalho?" disse o rapaz: "Isso hoje não existe."
Esta é a face negra da realidade que o Dr. Alberto da Ponte indicou. A geração do 25 de Abril concebeu generosamente leis para defender os direitos dos trabalhadores. As intenções eram boas, mas esqueceu-se de que lidava com seres humanos. Quando um funcionário sabe que a sua situação não depende da contribuição que dá à empresa, irá naturalmente fazer o menos possível. Em consequência o patrão reagirá a essa circunstância, evitando naturalmente o contrato. Entretanto os privilégios originais, escudados na lei, são fáceis de defender, mesmo perante fortes medidas de ajustamento. Por exemplo, a mesma RTP tenta agora corrigir o excesso de empregados através de processos de rescisão voluntária. Mas, como explicou o ex-director de informação Paulo Ferreira (Dinheiro Vivo, 30 de Outubro), têm saído os talentosos e ficado os menos capazes.
Tudo isto é natural e compreensível mas a consequência é a enorme desigualdade actual entre trabalhadores protegidos e vulneráveis. Este facto, um dos elementos mais vastos e influentes do nosso mercado de trabalho, é também o mais escamoteado e oculto. Nos discursos e declarações usam-se teorias, zangas, acusações e conspirações, para esconder a perversão de um sistema que se pretendia benevolente. O regime realmente não defende os trabalhadores, mas alguns trabalhadores. Estes episódios da RTP manifestam um dos grandes bloqueios nacionais e mostram como ele é camuflado na opinião pública. Segundo a versão oficial, os dois responsáveis da televisão foram agressores injustos, sendo devidamente insultados e, num dos casos, perdendo até o posto. As vítimas são os trabalhadores da estação. O que é estranho, pois a única forma de se sentirem atingidos seria admitir não fazer nada ou ser incapazes. Em qualquer caso nunca se fala dos verdadeiros prejudicados, contribuintes, espectadores e jovens como o meu amigo. Assim se dissimula o privilégio que as declarações denunciam.
As diferenças de prerrogativas são sectoriais e estatutárias mas, acima de tudo, etárias. Como o processo ainda tem poucas décadas, a disparidade acaba por se manifestar num fosso geracional. Os mais velhos, contratados nos primeiros anos do regime, ainda gozam das regalias originais, que já não puderam ser estendidas aos seus filhos. Deste modo se criou precariedade laboral, sobretudo nos jovens, enquanto os mais idosos estão seguros. O mesmo tema surge noutras áreas, como o corte nas pensões. A geração da revolução concedeu a si mesma reformas superiores aos descontos e financeiramente insustentáveis. O desequilíbrio tornou-se imparável e a redução inevitável. A indignação pelas medidas recentes é razoável e genuína, mas a culpa é menos da troika e do Governo que das leis irrealistas que criaram o défice. Os jovens, que pagam hoje e nunca terão tais receitas quando forem velhos são também aqui vítimas das boas intenções legais.
Por baixo destes e de muitos outros casos está o problema central da crise, escondido sob raivas e discussões. Quando, em nome de direitos e garantias, se estabelecem benefícios exagerados e injustificáveis, a própria lei torna-se injusta. As duas décadas de euforia endividada foram férteis em casos destes. Agora o nosso desenvolvimento está, não só soterrado em dívida, mas travado por interesses instalados.
Leis criadas para nos defender são a origem do problema. A liberalização da troika não provém de maldade ou ideologia, mas dos bloqueios e vítimas que esses benefícios geram, e muitos tentam esconder. É curioso que estes casos surjam na RTP que, juntamente com as outras televisões, tem sido veículo para a grande operação de ocultação dos interesses.
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