E tudo o Miró levou
Alexandre Homem Cristo
ionline 10 Fev 2014 - 05:00
ionline 10 Fev 2014 - 05:00
A decisão de onde investir o dinheiro, que é inteiramente da responsabilidade do governo, corre o risco de ser tomada pelos tribunais
A venda em leilão dos 85 quadros de Miró tem sido debatida a partir de três principais equívocos. O primeiro é que os quadros pertencem ao Estado. De facto, não pertencem. Os quadros são propriedade da Parvalorem (72 quadros) e da Parups (13 quadros), duas empresas cujo único accionista é o Estado. A diferença é importante, porque estas empresas foram criadas para gerir os créditos adquiridos no âmbito da nacionalização do BPN e "contribuir para a minimização do esforço financeiro do Estado associado a esta operação" (cf. site). Ou seja, para nacionalizar o BPN, o Estado contraiu um empréstimo que, forçosamente, terá de pagar. Os quadros, entre muitas outras coisas herdadas do BPN, estão directamente ligados a essa dívida. O segundo equívoco é acreditar que ficar com os 85 quadros não implicaria custos para o Estado. Na verdade, implicaria. Na medida em que a colecção está associada à dívida (referente à nacionalização do BPN), o valor de cada quadro que não for vendido recairá sobre os contribuintes. Dito de outro modo, cada obra que o Estado quisesse manter em Portugal teria de ser adquirida - e se todas o fossem o custo seria de 36 milhões de euros.
O terceiro equívoco é defender que seria possível rentabilizar a colecção num museu em Portugal, a médio prazo. Acontece que nenhum museu em Portugal, e poucos no mundo, tem um volume de receitas anuais suficiente que lhe permitisse, a médio prazo, pagar o valor da aquisição desta colecção. É, nesse aspecto, absolutamente implausível que a exposição dos quadros num museu viesse contrariar este facto.
Estes três pontos demonstram a complexidade oculta do debate. Afinal, os quadros não são nossos. Afinal, ficar com eles custa 36 milhões de euros. E, afinal, dificilmente esse investimento seria colmatado por receitas resultantes da sua exposição ao público.
Reconhecer isto não significa dizer que a oposição à venda seja ilegítima. Mas, contudo, significa que é ilegítima a oposição à venda se esta não se sustentar numa argumentação que responda à questão financeira. De onde vai o Estado retirar 36 milhões de euros para adquirir estas obras? E, tendo esse dinheiro, qual o critério que justifica que este seja investido em obras de Miró, e não no apoio às artes em Portugal ou na recuperação do nosso património?
Até hoje, nenhum dos críticos à venda encarou estas questões. O facto está longe de ser um pormenor. E a posição da Procuradoria-Geral da República (PGR) vem atribuir-lhe uma nova gravidade. Ao defender que as obras sejam consideradas de "interesse público", e tendo em conta que estas não pertencem ao Estado, a PGR está, na verdade, a defender que o Estado tem o dever de investir 36 milhões de euros para as adquirir - que é como quem diz que gastar esse dinheiro é de interesse público.
É isto que é surreal. A decisão de onde investir o dinheiro, que é inteiramente de política cultural e da responsabilidade do governo, corre o risco de ser tomada pelos tribunais, caso seja dada razão à PGR. Não seria uma novidade. A judicialização da política tem dado passos seguros em matérias orçamentais, na saúde e na educação. Agora, se for alargada à cultura, uma coisa será certa: os que acusam o secretário de Estado da Cultura de não ter poder para decidir terão, a partir desse dia, finalmente razão.
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