Uma vergonha eterna, a RTP
José Manuel Fernandes, Blasfémias, 22 de Março de 2013
Não, Paulo Ferreira não tem razão. Não, esta petição não tem razão.
O que está em causa no convite a José Sócrates não é o seu direito à palavra, a ser ouvido ou ao contraditório. O que está em causa é que são precisamente esses princípios que foram violados ao ser feito esse convite.
Primeiro que tudo: tem ou não José Sócrates o direito à palavra? É óbvio que tem. É óbvio que não está a ser silenciado por ninguém. Nem sequer foi alguma vez impedido de falar por manifestantes. Tem estado calado porque optou por estar calado. Foi para longe porque optou por ir para longe. Não deu entrevistas nestes dois anos porque não quis. Ou, pior porventura, porque não encontrou ninguém que aceitasse as condições que se habituou a impor cada vez que era entrevistado. É que convém recordar que José Sócrates, enquanto primeiro-ministro, sempre impôs condições. Houve órgãos de informação a que nunca deu nenhuma entrevista, outros onde o vimos pronunciar-se longamente face a entrevistadores que pareciam mais preocupados em não ser incómodos do que em ser pertinentes. Vimo-lo escolher sempre o terreno em que queria aparecer, prejudicando os órgãos de informação mais críticos e beneficiando os que eram mais próximos, para não dizer mais. Estou certo que se José Sócrates quisesse, ou aceitasse, todos – mas mesmo todos – os órgãos de informação portugueses o entrevistariam amanhã. Ou até mesmo hoje. Mas isso ele não aceita. O que aceitou é um espaço sem contraditório. Exactamente: um espaço sem contraditório, pois é isso que são os espaços que os políticos ocupam à pala da ideia de que fazem comentário político. É por tudo isto que citar Voltaire, como fez Paulo Ferreira – jornalista que considero e de quem sou amigo – é mais do inapropriado, é um sinal de falta de norte.
Mas há outro ponto muito importante. Aparentemente a RTP, além de achar que ele tem direito a palco especialíssimo para "ter direito à palavra", também entende que ele é uma pessoa qualificada para fazer comentário político. Eu bem sei que é uma originalidade portuguesa considerar que os políticos são os melhores comentadores políticos, o que é um sinal do nosso endémico subdesenvolvimento e atraso cultural, mas gostava de saber o que qualifica José Sócrates como comentador político. De alguém que analise a situação política espera-se distância e um mínimo de independência, duas coisas que não só José Sócrates não tem, como aparentemente a RTP não quer que ele tenha, pois está sobretudo preocupada em dar-lhe a palavra, aparentemente para vir defender o seu extraordinário legado. Acha a RTP e acham os assinantes (significativamente muito poucos) da petição a favor. Mas convenhamos que, do ponto de vista jornalístico, estamos perante uma novidade, quiçá uma inovação de carácter universal: o comentário político deixa de ser um espaço onde se quer ajudar os cidadãos a compreender o que se passou e o que pode vir a passar-se, passa a ser uma espécie de tribuna livre de ex-governantes desejosos de, nos seus próprios termos, retocarem as suas imagens públicas. Ainda se poderia discutir o interesse de um espaço de debate entre políticos com a presença de José Sócrates, como ele teve no passado pela mão amiga e cúmplice de Emídio Rangel (ou como tem Morais Sarmento na Renascença), mas não é disso que estamos a falar. Aquilo de que estamos a falar é de um espaço de propaganda, como se depreende da própria argumentação que defende o alegado "direito à palavra e ao contraditório", um espaço que vai muito mais longe na violentação dos princípios do jornalismo do que outros espaços de comentário, equívocos e híbridos, que existem espalhados pelos vários canais televisivos. Acho que não é preciso fazer um desenho para explicar as diferenças…
É, por fim, curioso ver como alguns jornalistas se mostraram quase entusiasmados com este regresso. Em condições normais, ou de um mínimo de sanidade mental, os jornalistas estariam a defender a diferença entre realizar entrevista a um político, onde os entrevistadores devem colocar as questões difíceis e conseguir as cachas porque sempre procuram, e um palco sem contraditório. Muitos, percebi, deliciam-se com as intrigas que tal espaço poderá gerar, como se o dever dos jornalistas não fosse informar, esclarecer, perguntar, investigar, antes fosse o de intrigar. Esta perspectiva umbiguista leva-os a antecipar um êxito de audiências. Eu antecipo o contrário, pois não há nada que o povo aprecie menos neste momento do que intrigalhadas.
Quanto à RTP, mostrou que continua a ser a RTP de sempre, capaz de corromper a lucidez e turvar o raciocínio mesmo dos mais experientes. A solução não é a esquecida privatização: é a extinção. Noutros tempos até se salgariam as terras que pisou…
(Como é público, tenho a pior opinião possível de José Sócrates como político, como governante e como pessoa. Mas não fiz qualquer consideração política nesta argumentação. É que, como jornalista, até como jornalista que não gostava da política do primeiro-ministro, sempre quis entrevistá-lo e dar-lhe a palavra, algo que ele sempre recusou, anos a fio. O que nunca me passaria pela cabeça era pedir-lhe – a ele ou a qualquer outro político – para vir ocupar as colunas nobres de análise e comentário político, espaços jornalísticos por excelência. Até porque esses espaços, equivalentes ao que a RTP agora lhe dá, são distintos dos espaços das tribunas de opinião onde, aí sim, pode haver espaço para políticos, mas com conta, peso e medida.)
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