O Papa importa e fascina a Europa
1. Bastaram 24 horas para que Francisco fosse definido como um "Papa de gestos", gestos simples que anunciam "mudanças revolucionárias". O grande gesto de ruptura que foi a renúncia de Bento XVI quer dizer que os tempos estão maduros. Para quê e em que direcção? É o que aguardamos saber. A multissecular Igreja Católica tem uma cultura de resistência à mudança mas sobrevive sempre, às grandes ameaças e às misérias próprias, porque mantém a sua identidade fundamental e acaba sempre por se adaptar aos tempos - ou por se purificar, quando é caso disso. Desta vez combina uma promessa de reforma com uma viragem geopolítica. Esta viragem é um grande sinal para a Europa.
O gesto da renúncia de Bento "mudou para sempre o papado"- escreveram os vaticanistas - e trouxe também um papa do Sul. É um sinal dos tempos e da nova geopolítica religiosa: é na América Latina que vive a maioria dos católicos. O centro de gravidade do catolicismo muda inexoravelmente para o Sul. É aqui que se expande, é aqui que a fé se manifesta com maior juventude e vigor, em contraponto com a descristianização, ou melhor, com a crescente indiferença religiosa da Europa. Este foi o desafio perdido de Bento XVI, "o último Papa europeu" - no sentido em que foi certamente o último a ter a Europa no centro da sua agenda. Ratzinger pretendeu reconquistar as elites ocidentais e pediu uma "fé clara". Não fez um apelo ao fundamentalismo, como alguns entenderam. "Definir os conteúdos e a fronteira da fé - e de qualquer pensamento - é o que permite aderir ou não aderir em plena razão", observou em 2005 o escritor italiano Claudio Magris, que não é crente. Os europeus ou são indiferentes ou preferem "o catolicismo opcional de supermercado, em que cada um escolhe o que lhe agrada".
A mudança do centro de gravidade do catolicismo arrastará inevitáveis mudanças, da reforma das estruturas, num sentido mais colegial, à "limpeza da Cúria", fonte dos escândalos que ensombraram o fim do pontificado de Bento. E, inevitavelmente, a dar prioridade aos problemas das Igrejas do Sul. Ninguém espere um "liberalismo doutrinal", talvez uma Igreja mais aberta e humilde, o que é muito diferente.
2. Para a Europa, a mudança acontece num momento de pessimismo, em que toma consciência de que caminha para a "insignificância geopolítica", o que a chegada do Papa do Sul sublinha, apesar de não ser consequência de qualquer declínio europeu. É uma desagradável coincidência.
As instituições comunitárias estão quase paralisadas e passam aos cidadãos a mensagem de que rodam no vazio e perderam a capacidade de inventar um futuro. Em muitos países, os sistemas políticos estão bloqueados e incapazes de pensar em termos estratégicos e de longo prazo, o que suscita o surto da antipolítica e dos populismos. Enquanto a Itália parece à deriva, a Alemanha manifesta a "tentação de se isolar do resto da Europa", avisa um jornal italiano.
Os europeus muito escreveram sobre a globalização e a demografia, mas não preveniram o impacto desta mudança de paradigma e mostram-se incapazes de lhe responder. A esquerda disfarçou a sua nudez teórica através de "guerras de substituição", apostando em combates simbólicos e sobretudo nas "causas fracturantes".
O mal-estar europeu não é independente da crise de valores. "A antipolítica remete para um défice de legitimidade da política", escreveu o politólogo checo-francês Jacques Rupnik. "A política deve legitimar-se através de qualquer coisa que a transcenda, como valores éticos e espirituais."
Quem mais fundamente pôs o dedo na ferida não foi sequer Ratzinger, mas Vaclav Havel, o antigo Presidente checo que largamente citei na altura da sua morte. Numa entrevista de 2007, alertou: "O Ocidente democrático perdeu a capacidade de proteger e cultivar os valores que não cessa de reclamar como seus. (...) O pragmatismo dos políticos que querem ganhar eleições futuras, reconhecendo como suprema autoridade a vontade e os humores de uma caprichosa sociedade de consumo, impede esses mesmos políticos de assumirem a dimensão moral, metafísica e trágica da sua própria linha de acção. (...) Uma nova divindade tende a suplantar o respeito pelo horizonte metafísico da vida humana: o ideal de uma produção e de um consumo incessantemente crescentes."
E veio a crise. Comentou em Outubro de 2010: "Nós esquecemos o que as anteriores civilizações sabiam: nada está garantido por si mesmo. Penso que a recente crise financeira e económica é de extrema importância e constitui um eloquente sinal para o mundo contemporâneo. (...) É um aviso contra a desproporcionada autoconfiança e orgulho da civilização moderna."
"Vivemos na primeira civilização ateia, numa civilização que perdeu a conexão com o infinito e a eternidade. Deve alarmar-nos." Havel, que não tinha religião, não propunha a conversão religiosa nem o misticismo, mas a recuperação da espiritualidade e do sentido da transcendência. "A transcendência é a única alternativa real à extinção."
3. Se o centro de gravidade da Igreja Católica se desloca para Sul, muito interessante vai ser observar o que se passará no Norte. A laicidade e a secularização são traços constituintes das sociedades ocidentais, particularmente das europeias. Mas este facto não liquida a questão do confronto com os valores cristãos.
Num ensaio recente, o cardeal de Viena, Christoph Schönborn, alude ao "estimulante paradoxo" de um cristianismo que se tornou "estranho" na Europa onde nasceu. "A situação do cristianismo na Europa é estimulante e plena de oportunidades. É, em certa medida, um corpo estranho mas evoca um sentimento familiar." A cultura europeia só terá algo a oferecer e a propor à sociedade globalizada a partir do legado dos valores cristãos, sempre presente - a dignidade da pessoa, a unicidade da Humanidade, a visão da liberdade do cidadão perante o Estado.
É por isto que o Papa importa e fascina uma Europa que se crê "descristianizada".
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