Estou farto desta nossa mania de acreditar nas falácias do pensamento mágico

José Manuel Fernandes Público, 15/03/2013

Agora todos querem crescimento, mas ninguém explica como. Pior: a era do crescimento pode estar a acabar?

Afinal parece que estamos todos de acordo. Com crescimento económico resolvem-se os nossos problemas. Diminui o desemprego, diminui o défice e paga-se a dívida. Perfeito. Só é estranho porque não se lembraram disso mais cedo. Ou talvez não.
Há no debate público em Portugal uma tendência para o pensamento mágico: diz-se o que era bom que acontecesse e espera-se que aconteça mesmo. Mesmo que se faça exactamente o oposto do necessário. A redescoberta do crescimento como mezinha para todos os males é apenas a mais recente manifestação desta doença cognitiva que confunde desejos com realidade. Ora a realidade é muito mais dura e intratável do que os desejos. Até porque o crescimento não é apenas uma quimera portuguesa, está a tornar-se num problema em todo o mundo desenvolvido.
Portugal tem há muito um problema de crescimento. Na primeira década do euro, antes de estoirar a crise e chegar a troika, o nosso país registou mesmo o terceiro pior crescimento de todo o mundo. Pior do que nós só o Zimbabwe de Mugabe e a Itália de Berlusconi. Nessa primeira década do euro houve em abundância tudo aquilo que os novos arautos do crescimento hoje estão a pedir: crédito bancário abundante, consumo esfusiante, investimento público abundante e muitos e variados estímulos à economia. Isto, para além de um Estado social a crescer e de uma dívida (tanto a pública como a privada) a caminho da estratrosfera. Insistir nessas fórmulas, com estímulos ao consumo ou programas de investimento públicos, e esperar que desta vez dêem resultado, é apenas a forma mais desesperada e mais lunática de pensamento mágico. Não é a única.
A semana passada o secretário de Estado do Orçamento, Luís Morais Sarmento, foi ao Parlamento dizer que o Governo espera que a dívida pública regresse ao tecto dos 60% do PIB lá para 2040, e isto se o crescimento nominal do PIB anual for de 3,3%. Ouvi, e nem soube se havia de rir ou de chorar. Mais uma vez um economista pegava em números hipotéticos e projectava-os no futuro, acreditando que se pode repetir o passado e regressar a ritmos de crescimento interessantes, mesmo que distantes dos conhecidos no único período em dois séculos em que a economia portuguesa cresceu a sério, a década de 1960 e o início da década de 1970. Nada é menos seguro. Até porque é necessário ver o que se está a passar na Europa e nos Estados Unidos.
Durante muitos milénios a economia mundial quase não cresceu, e mesmo os surtos de desenvolvimento localizados, como o associado ao Império Romano, incorporaram taxas de crescimento hoje negligenciáveis (0,2% ao ano). As coisas só começaram a mudar com a Revolução Industrial, mas nas primeiras décadas depois da máquina a vapor não faltaram as figuras ilustres que, mesmo reconhecendo o aumento da riqueza, previam que nove décimos da população iriam continuar a viver na miséria mais extrema, a miséria tão bem descrita nas obras de Dickens. Neste ponto tanto convergiam figuras como Malthus e Marx, como David Ricardo e John Stuart Mill. Só no fim do século XIX um outro economista, Alfred Marshall (que seria mais tarde professor e patrono de Keynes), associou o desenvolvimento tecnológico e do comércio ao crescente bem-estar das populações. A evolução da higiene e da ciência médica proporcionaram, ao mesmo tempo, uma extraordinária evolução na esperança de vida, e a população mundial começou a crescer como nunca antes sucedera. Entre o apogeu do Império Romano e a viagem de Colombo o nosso planeta ganhou mais 200 milhões de habitantes - hoje acrescenta 200 milhões todos os três anos. E tem-no feito dando mais qualidade de vida aos que vão chegando. Falta saber até quando.
No início do século XX outro economista, Schumpeter, identificou o segredo que sustentava a máquina do progresso: a inovação, e a "destruição criativa" que ela gera nas sociedades abertas. Foi a inovação que permitiu o constante aumento de produtividade de economias que serviam sociedades cada vez mais numerosas e mais afluentes. Nessa altura, em Inglaterra, o PIB crescia ao ritmo de 1% ao ano por pessoa. Cinquenta anos depois chegaria a crescer ao ritmo de 2,5% ao ano e por pessoa nos Estados Unidos. Isto significava que a riqueza duplicava em cada geração, um ritmo alucinante que agora está a ser ultrapassado pela China - mas que se perdeu há décadas no mundo desenvolvido. Há algumas semanas a The Economist dedicava a sua capa, o seu editorial e o dossier de abertura precisamente a este tema e interrogava-se se a máquina de ideias que proporcionou o milagre global dos últimos dois séculos não se esgotou. É a pergunta pertinente, tão ou mais pertinente quanto os problemas ambientais e climáticos também colocam sérios problemas à lógica do crescimento infinito.
Ao fim de quase 70 anos de paz e de algumas décadas de saltos inimagináveis na qualidade de vida na Europa e nos Estados Unidos, as nossas sociedades parecem ter desaprendido de viver sem crescimento. Criaram sistemas de protecção social que só são sustentáveis com ritmos de crescimento relativamente elevados - muito mais elevados do que os que conhecemos na última década, mesmo antes da crise. Todos os modelos económicos de sustentabilidade das finanças públicas, dos sistemas de pensões ou dos seguros de doença pressupõem - na Europa como nos Estados Unidos - taxas de crescimento da economia semelhantes às dos modelos de Luís Morais Sarmento. Taxas de crescimento que mesmo na mais inovadora das economias ocidentais, a dos Estados Unidos, ou na mais eficiente, a alemã, não se estão a registar. O que nos obriga a colocar a pergunta que ninguém coloca: não será a actual crise financeira apenas um sintoma da crise mais global de máquinas de criar riqueza que emperraram?
O que se está a passar no nosso país é um bom exemplo de alguns destes problemas. Primeiro, porque é muito visível como é difícil, senão impossível, fazer recuar os níveis de vida colectivos. Se lermos apenas os jornais e virmos as televisões, ficamos a saber que o país está à beira da implosão social, que há miséria por todo o lado e que recuámos décadas (esta semana li mesmo algures que teríamos recuado aos níveis da I República...). O ambiente é pesado e o pessimismo asfixiante. As queixas são generalizadas e não sou ninguém para as desmentir - só proponho colocá-las em perspectiva: consultando as séries da Pordata, verifiquei que em 2012 os níveis do PIB, do PIB per capita, do consumo público e do consumo privado recuara para patamares que oscilam entre os registados em 2002 e 2004, uma época em que ninguém dizia estarmos a viver qualquer apocalipse. Em contrapartida, o que caiu mesmo foi o investimento e a poupança, o que mostra que estamos com os níveis de consumo de há dez anos, mas com muito menos capacidade de investir para voltar a crescer. E como para investir é necessário haver poupança (ou então há mais dívida), é difícil ver como "estímulos ao consumo" possam fazer mais do que aquelas aspirinas que mascaram as doenças mais graves mas nada curam.
É muito fácil falar de crescimento. Todos estão de acordo. Até porque somos criaturas de sociedades habituadas ao crescimento. É muito mais difícil dizer como se faz crescer o país por caminhos obrigatoriamente diferentes dos seguidos na última década. Para além de que há dois temas tabu. Um tem a ver com a única receita que se tem mostrado eficaz no combate à estagnação económica, a baixa de impostos, pois ela implica cortes permanentes na despesa pública, e esses ninguém quer, como se viu nos últimos meses. O outro tem a ver com a crise da inovação e do crescimento em todo o mundo desenvolvido, uma crise que nos devia fazer pensar em novos consensos sociais mais sustentáveis no tempo. Em Portugal prefere-se, em alternativa, o pensamento mágico e demasiada gente se sente com direito a almoços grátis. É uma tragédia, mas é assim. Somos assim.
P.S. - Francisco? Só posso dizer que gosto. Muito.

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