Os pobres pagam a crise
JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2013-03-18
"O estudo mostra que as medidas são regressivas - significando que os grupos de rendimento mais baixos perderam uma maior proporção do seu rendimento que os grupos mais altos (até meados de 2011). Portugal foi o único país onde as perdas percentuais foram consideravelmente maiores (em 2011) no primeiro e segundo decis [os 20% mais pobres] que mais acima na distribuição de rendimentos - por outras palavras, os mais pobres foram os mais atingidos." (p.36) "Em Portugal o efeito adverso nas crianças é particularmente marcado para as famílias com rendimentos baixos." (p. 36)
Como é possível que os terríveis custos deste brutal ajustamento caiam sobretudo nos pobres, em particular nas crianças? Não é verdade que todas as medidas, da subida de impostos aos cortes de benefícios, têm ressalva para rendimentos baixos? Como entender a enorme injustiça?
O problema vem, não das opções políticas, imposições externas ou evolução conjuntural, mas da própria natureza do sistema sociopolítico que nos trouxe à crise e permanece. Este baseia-se numa grande ilusão, construída nas últimas décadas, que criou o desajustamento e controla a trajectória para sair dele. A dívida que nos estrangula nasceu da distribuição de benesses a múltiplos grupos e sectores nos anos da ilusão a crédito. Agora, os que foram os grandes beneficiários são também aqueles com mais capacidade de se defender dos sofrimentos. São eles que protestam e isso agrava a situação, forçando o Governo a cortar, não onde deve, mas onde pode. E o local mais fácil, pela falta de influência, são os pobres.
As elites económicas, políticas e financeiras protegem-se mutuamente e acedem aos poucos negócios, apoios, créditos e influências que a recessão permite. Por outro lado serviços, funcionários, médicos, militares, professores, polícias, sindicatos, etc., têm formas de pressão e, apesar de muito atingidos, sempre amaciam o golpe. Estes todos são quem mais reclama, porque têm voz e influência. Dizem-se as grandes vítimas, garantindo que aquilo que os prejudica arruína Portugal. Entretanto os verdadeiros pobres, por o serem, nem abrem a boca.
Além disso, espantosamente, perante a terrível situação, os cidadãos põem a sua esperança no próprio sistema que a criou. Constata-se o sofrimento mas, em vez de se apoiar e ajudar os pobres, protesta-se e barafusta-se para que o Governo os apoie e ajude. Não se muda a situação, grita-se para que os políticos a mudem. Pede-se aos próprios que acusamos que resolvam o mal. Esta insólita relação amor/ódio explica-se porque quem protesta são, não os mais atingidos, mas os mais influentes. São esses que pedem "política de crescimento" que significa, não dinamismo e concorrência, mas o regresso às dádivas públicas cuja evidente insustentabilidade nos enterrou.
A única ajuda real está na solidariedade visível, no apoio sereno e amigo, na caridade organizada que, na Caritas e tantas outras iniciativas, das nacionais às individuais, lida, não com ideologias e estratégias, mas com pessoas e necessidades.
No final Portugal sairá da crise, e até airosamente, como nas vezes anteriores. A paz social, apesar das ameaças, acabará por se manter e tudo será como antes. Porque, afinal, quem pagou foram os pobres silenciosos, só ajudados pela caridade, também silenciosa.
DN 2013-03-18
O País aguenta?" A pergunta, como de costume, é mal formulada. O problema não está na capacidade da sociedade suportar os sacrifícios, mas na forma da sua distribuição. Como ao longo de séculos, o País não só aguentará o choque, mas até se vai desinvencilhar mais depressa do que o esperado. Só que os custos cairão sobretudo sobre os mais desfavorecidos, que, como sempre, são também silenciosos.
O recente relatório da Caritas Europa "The Impact of the European Crisis" (www.caritas-europa.org/code/en/publications.asp) constitui um estudo bastante completo do efeito preliminar da crise e austeridade nos mais pobres. A sua leitura revela traços específicos do caso português, que lembram velhas tendências nacionais."O estudo mostra que as medidas são regressivas - significando que os grupos de rendimento mais baixos perderam uma maior proporção do seu rendimento que os grupos mais altos (até meados de 2011). Portugal foi o único país onde as perdas percentuais foram consideravelmente maiores (em 2011) no primeiro e segundo decis [os 20% mais pobres] que mais acima na distribuição de rendimentos - por outras palavras, os mais pobres foram os mais atingidos." (p.36) "Em Portugal o efeito adverso nas crianças é particularmente marcado para as famílias com rendimentos baixos." (p. 36)
Como é possível que os terríveis custos deste brutal ajustamento caiam sobretudo nos pobres, em particular nas crianças? Não é verdade que todas as medidas, da subida de impostos aos cortes de benefícios, têm ressalva para rendimentos baixos? Como entender a enorme injustiça?
O problema vem, não das opções políticas, imposições externas ou evolução conjuntural, mas da própria natureza do sistema sociopolítico que nos trouxe à crise e permanece. Este baseia-se numa grande ilusão, construída nas últimas décadas, que criou o desajustamento e controla a trajectória para sair dele. A dívida que nos estrangula nasceu da distribuição de benesses a múltiplos grupos e sectores nos anos da ilusão a crédito. Agora, os que foram os grandes beneficiários são também aqueles com mais capacidade de se defender dos sofrimentos. São eles que protestam e isso agrava a situação, forçando o Governo a cortar, não onde deve, mas onde pode. E o local mais fácil, pela falta de influência, são os pobres.
As elites económicas, políticas e financeiras protegem-se mutuamente e acedem aos poucos negócios, apoios, créditos e influências que a recessão permite. Por outro lado serviços, funcionários, médicos, militares, professores, polícias, sindicatos, etc., têm formas de pressão e, apesar de muito atingidos, sempre amaciam o golpe. Estes todos são quem mais reclama, porque têm voz e influência. Dizem-se as grandes vítimas, garantindo que aquilo que os prejudica arruína Portugal. Entretanto os verdadeiros pobres, por o serem, nem abrem a boca.
Além disso, espantosamente, perante a terrível situação, os cidadãos põem a sua esperança no próprio sistema que a criou. Constata-se o sofrimento mas, em vez de se apoiar e ajudar os pobres, protesta-se e barafusta-se para que o Governo os apoie e ajude. Não se muda a situação, grita-se para que os políticos a mudem. Pede-se aos próprios que acusamos que resolvam o mal. Esta insólita relação amor/ódio explica-se porque quem protesta são, não os mais atingidos, mas os mais influentes. São esses que pedem "política de crescimento" que significa, não dinamismo e concorrência, mas o regresso às dádivas públicas cuja evidente insustentabilidade nos enterrou.
A única ajuda real está na solidariedade visível, no apoio sereno e amigo, na caridade organizada que, na Caritas e tantas outras iniciativas, das nacionais às individuais, lida, não com ideologias e estratégias, mas com pessoas e necessidades.
No final Portugal sairá da crise, e até airosamente, como nas vezes anteriores. A paz social, apesar das ameaças, acabará por se manter e tudo será como antes. Porque, afinal, quem pagou foram os pobres silenciosos, só ajudados pela caridade, também silenciosa.
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