O poder na RTP

Alexandre Homem Cristo, i-online em 25 Mar 2013
Mais interessante do que vociferar contra Sócrates, é notar como deste episódio tão simples sobressaem alguns dos mais importantes vícios do regime
Há episódios que, na sua simplicidade, explicam o regime. O regresso de Sócrates ao debate público e político, semanalmente e em horário nobre, é um deles. Porque as suas responsabilidades na actual crise são gigantescas. E porque Sócrates não voltou sozinho. Consigo, regressou Jorge Coelho, o senhor Mota-Engil que enriqueceu com o betão que nos empobreceu. E também, desdobrando-se entre entrevistas, artigos de opinião e comentários televisivos, Maria de Lurdes Rodrigues, a arquitecta da festa da Parque Escolar, aparece agora renascida. Não há coincidências. Quem clamou "queremos as nossas vidas de volta", nas manifestações que encheram as ruas do país, certamente nunca pensou que um regresso ao passado fosse algo tão gráfico. E quem, nestes últimos dois anos, tanto apelou à mudança e ao ultrapassar do nosso passado recente certamente nunca pensou que fosse tão difícil. Mas é. E, a partir de agora, será ainda mais.
O facto de Sócrates, Jorge Coelho e companhia regressarem às luzes da ribalta, tão súbita e estrondosamente, não é um acaso. Se o PS socrático não conseguiu, através de António Costa, mandar no partido e no parlamento, pelo menos controlará o debate público. A oposição passará assim para as televisões, liderada pela RTP.
Compreende-se a indignação que provoca a ironia de ter os responsáveis políticos que atiraram o país ao tapete a explicar o que ele deve fazer para se levantar. Ironia que é particularmente acentuada no caso de Sócrates, por ser o principal responsável político da nossa ruína e por serem os contribuintes a financiar o programa televisivo que dará palco à sua reabilitação. Mas mais interessante do que vociferar contra Sócrates, é notar como deste episódio tão simples sobressaem alguns dos mais importantes vícios do regime. Da inimputabilidade de quem ocupa cargos políticos à fragilidade do debate público (e da memória), passando pela cumplicidade da RTP. E o que nos diz este episódio sobre a RTP?
Leio, de quem entende destas coisas mais do que eu, que, do ponto de vista jornalístico, Sócrates foi uma excelente contratação para a RTP. Se as audiências são o objectivo, como confirmou o seu director, talvez até tenha sido. Mas o raciocínio não deixa de ser contraditório. Afinal, não financia o Estado uma televisão precisamente para que esta não limite a sua grelha a critérios concorrenciais, optando antes pela qualidade e pelo esclarecimento do público? A questão deveria relançar as dúvidas sobre a natureza pública da estação e a ausência das suas vantagens.
Mas esta é apenas metade da história que importa. É que tudo isto é igualmente revelador acerca da gestão da RTP, cuja dependência do poder político é tremenda. Sempre o foi. Só que, ao contrário do que por aí se afirma, ficou agora claro não ser Relvas quem manda na estação pública. Aliás, para a RTP, Relvas é a face dos despedimentos, dos cortes orçamentais, da reestruturação, da mudança. Ora, já se entendeu, a RTP não quer mudar. E, com o presente hipotecado, começou a preparar o futuro, acreditando que ele não passará por Passos Coelho, Relvas ou mesmo Seguro. Importa, então, apostar no cavalo certo.
A nostalgia é um sentimento que de algum modo nos define. Até na política, são muitos os nostálgicos. Mas à falta de um regresso ao passado, os nostálgicos terão de suportar estes indigestos regressos do passado. Enquanto isso, a RTP, fiel à sua tradição, parece decidida a convencer o país das vantagens da sua privatização.

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