Uma semana na América
Segundo vários analistas, a crise que a zona euro atravessa é produto da crise geral europeia. E a crise geral europeia é produto da crise financeira iniciada nos EUA em 2008. E todas estas crises são crises do Ocidente em geral. São produto da globalização e da concorrência desleal do Terceiro Mundo que se aproveita do comércio livre para exportar produtos baseados em mão-de-obra barata, onde não existe Estado social. Por outras palavras, estamos todos em crise, no Ocidente.
É caso para dizer que isso pode muito bem ser verdade em teoria, mas não funciona na prática - pelo menos na América. Passei lá uma semana e nunca encontrei ninguém a falar da crise inexorável em que vivemos. Por todo o lado, encontrei gente confiante e empreendedora, discutindo inúmeros planos para melhorar os seus modos de vida, apreciando sem complexos a alegria de viver. A América pode estar em crise, mas os americanos que encontrei ainda não foram informados.Já sei a resposta europeia a este ponto: só falei com americanos ricos. É bem verdade. Eram certamente ricos em boa disposição e independência. A motorista do mini-bus que me levou da pequena cidade de Boulder, no Colorado, ao aeroporto de Denver, cantava ao volante e insistia em ser ela a carregar as malas dos passageiros para o porta-bagagens. Os empregados dos pequenos hotéis onde fiquei em Charlottesville e depois em Boulder eram todos milionários disfarçados. O mesmo acontecia com os funcionários das universidades de Virgínia e de Colorado com quem reuni. E também da Jefferson Foundation, em Monticello e Montalto. Por padrões europeus, eles estavam intrigantemente bem-dispostos e optimistas. Só podiam ser milionários disfarçados, com contas em paraísos fiscais, que não eram solidários com o enorme aumento de impostos que a nossa crise impõe. Por falar em impostos, fiquei a saber que a Thomas Jefferson Foundation não recebe um único cêntimo do dinheiro dos contribuintes, quer dizer, dos impostos. E mantém a casa-museu do terceiro Presidente americano, autor da Declaração de Independência. Explora a antiga vasta propriedade de Jefferson, que adquiriu a privados com dinheiro privado, tem um centro de conferências, e ainda uma belíssima biblioteca onde acolhe académicos do mundo inteiro.
A vizinha Universidade de Virgínia, que foi fundada e literalmente desenhada por Jefferson, é uma universidade pública estadual. Isso significa que os alunos oriundos da Virgínia pagam cerca de 20 mil dólares de propinas anuais. Os alunos de outros estados pagam o dobro. Uma vasta rede de bolsas de estudo e empréstimos, basicamente privada, garante que nenhum aluno admitido com base no mérito será impedido de frequentar a universidade por dificuldades económicas.
Depois visitei a Universidade de Colorado, em Boulder, junto às montanhas rochosas, literalmente in the middle of nowhere. Só tem quatro a cinco prémios Nobel (as estimativas dividiam-se). Também é uma universidade estadual, mas apenas 4 por cento do orçamento anual tem origem em dinheiro dos contribuintes. O campus é muito agradável e a universidade tem apenas 350 programas no estrangeiro.
Isto é a América. Andei por lá bastante divertido e aproveitei para reler uns livros do meu amigo Gordon Wood sobre a fundação da pátria. Eles recordam uns pormenores que talvez ajudem a explicar o fenómeno da vitalidade indígena.
A revolta contra a Inglaterra começou por causa dos impostos, um célebre imposto de selo e mais uns quantos. A irritação subiu de tom quando Londres decidiu impor restrições ao comércio e conceder privilégios particulares a comerciantes particulares, designadamente no chá. A indignação explodiu quando Londres decidiu julgar em Inglaterra- e não por júri local, como manda a common law - alguns rebeldes americanos.
Todas estas infracções eram infracções à Magna Carta inglesa de 1215. Estão descritas na Declaração de Independência de 1776. Basicamente, a revolução americana foi feita em nome das tradicionais leis anglo-americanas (Laws of the land) e contra o despotismo da inovação do governo de Londres - que não as respeitou.
Foi uma revolução promovida por gentlemen, cidadãos educados e com profissões independentes. Acreditavam nas virtudes da participação cívica no governo, mas não queriam nada do governo - a não ser que este respeitasse e fizesse respeitar a lei, e que não se intrometesse na vida de cada um.
A motorista que, na semana passada, cantava ao volante do mini-bus no Colorado era certamente descendente daqueles pais fundadores da República americana. Como se dizia em Londres, em 1776, ela não era suficientemente sofisticada para compreender as complexidades do Estado moderno e a crucial importância de aumentar os impostos - ou de taxar por decreto e de surpresa os depósitos bancários dos cidadãos de Chipre, quem sabe, amanhã, de toda a zona euro.
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