Os espíritos deste Natal
Público, 24.12.2008, Rui Ramos
Ao longo de 2008 recebemos a visita de vários espíritos, mas as suas mensagens não foram coerentes
Scrooge era, segundo reza a história, um misantropo mesquinho. Num certo Natal, recebeu a visita de três espíritos: o do passado, do presente e do futuro. Teve sorte: embora separadamente, deixaram-lhe todos, muito claramente, a mesma mensagem. Scrooge percebeu o que tinha a fazer, emendou-se e talvez tenha sido feliz. Nós, em 2008, não tivemos tanta sorte. Também recebemos vários espíritos, não nesta noite de Natal, mas ao longo do ano. As suas mensagens, porém, não foram exactamente coerentes.
O primeiro espírito de 2008 esteve connosco até ao fim do Verão. Deu-nos a entender que precisávamos de ser mais austeros, "verdes" e competitivos. Estávamos a gastar demais, andávamos a dar cabo do planeta e não éramos suficientemente produtivos. O espírito mostrou-nos os preços a subir e prometeu-nos que o petróleo passaria para sempre dos 200 dólares dentro de um par de meses. Vimos então o documentário de Al Gore com o antigo tremor dos fiéis perante o risco do inferno. Teríamos de mudar rapidamente de estilo de vida. Os Estados continham despesas, os bancos centrais subiam as taxas de juro e todos lamentavam o crédito laxista proporcionado pela banca comercial.
Estávamos nós a pensar em emendar-nos, quando o Outono trouxe um segundo espírito, muito diferente do primeiro. Este explicou-nos que, em vez de subir, os preços iam descer (o que, entretanto, aprendemos também não ser coisa boa) e antecipou que o petróleo chegaria a menos de 40 dólares. Pediu-nos para continuarmos a gastar dinheiro, dispensou-nos (moderadamente) de sermos "verdes" e premiou, com dinheiro dos contribuintes, as empresas comprometidas por erros de gestão, negócios irregulares ou falta de competitividade. Os bancos centrais baixaram as taxas de juros e os governos atribuíram-se a si próprios a deliciosa "obrigação" de aumentar as suas despesas. A preocupação de aumentar os gastos fez até alguns sábios discordarem de cortes fiscais, não porque pudessem desequilibrar os orçamentos, mas por temerem que os contribuintes poupassem o dinheiro que o Estado lhes viesse a deixar no bolso. A banca passou a ser censurada pela relutância em emprestar.Entre a "crise do petróleo" no Verão e a "crise financeira" no Outono, nunca terá havido um ano tão esquizofrénico como 2008. Estivemos obcecados com a inflação num momento, apenas para agonizarmos sobre a deflação no seguinte. Culparam-nos por esbanjarmos, para logo depois nos acusarem de sermos prudentes. Dir-me-ão: mas faz todo o sentido. A moral em tempo de vacas gordas não pode ser a mesma que em tempo de vacas magras. E esta é, no fundo, a questão: faz algum sentido perguntar qual é, em princípio, a melhor forma de vida ou o melhor modelo social - ou basta-nos comportarmo-nos e organizarmo-nos como permite ou exige a conjuntura? Deveremos ser sempre responsáveis, ambientalistas e competitivos, ou depende do sentido do vento?
O conto de Dickens, muito lembrado nesta época do ano, sugere uma resposta talvez eticamente ambígua. Devidamente flagelado pelos sucessivos espíritos de Natal, o somítico misantropo acaba por aderir ao clube da simpatia e generosidade. No entanto, Scrooge não se corrigiu por ter finalmente compreendido o que era justo em princípio, mas depois de descobrir, de fonte mais ou menos segura, que o caminho da mesquinhez o levaria a um fim triste e desconfortável. No fundo, fez um cálculo: passou a ser bom, apenas porque os espíritos lhe garantiram que a bondade era um investimento vantajoso. Scrooge simboliza uma época: aquela em que a moral passou a depender, não da diferença entre o certo e o errado, mas de um simples cálculo de deve e haver.
Hoje, do ponto de vista moral e de opções de vida, tendemos todos a ser investidores astutos, como Scrooge. Estamos talvez dispostos a mudar, não porque a vida que levamos seja necessariamente errada ou a que podemos levar possa ser mais certa, mas desde que nos dêem a certeza de que uma vida diferente nos trará mais conforto e felicidade. Por isso, quase que admitimos tudo, desde que com as devidas provas e demonstrações de rentabilidade. Seremos "bons" ou "maus", de acordo com o que render mais no momento. A nossa moral é a do catavento.Para termos tantas visitas espirituais como Scrooge, falta-nos ainda uma terceira. Virá em 2009? E que nos dirá o terceiro espírito? Talvez nos pergunte simplesmente: como pensam que devem viver? Eis a questão mais difícil. Provavelmente, continuaremos a esperar pelos acontecimentos para saber o que fazer.
Boas Festas para todos.
Historiador
Ao longo de 2008 recebemos a visita de vários espíritos, mas as suas mensagens não foram coerentes
Scrooge era, segundo reza a história, um misantropo mesquinho. Num certo Natal, recebeu a visita de três espíritos: o do passado, do presente e do futuro. Teve sorte: embora separadamente, deixaram-lhe todos, muito claramente, a mesma mensagem. Scrooge percebeu o que tinha a fazer, emendou-se e talvez tenha sido feliz. Nós, em 2008, não tivemos tanta sorte. Também recebemos vários espíritos, não nesta noite de Natal, mas ao longo do ano. As suas mensagens, porém, não foram exactamente coerentes.
O primeiro espírito de 2008 esteve connosco até ao fim do Verão. Deu-nos a entender que precisávamos de ser mais austeros, "verdes" e competitivos. Estávamos a gastar demais, andávamos a dar cabo do planeta e não éramos suficientemente produtivos. O espírito mostrou-nos os preços a subir e prometeu-nos que o petróleo passaria para sempre dos 200 dólares dentro de um par de meses. Vimos então o documentário de Al Gore com o antigo tremor dos fiéis perante o risco do inferno. Teríamos de mudar rapidamente de estilo de vida. Os Estados continham despesas, os bancos centrais subiam as taxas de juro e todos lamentavam o crédito laxista proporcionado pela banca comercial.
Estávamos nós a pensar em emendar-nos, quando o Outono trouxe um segundo espírito, muito diferente do primeiro. Este explicou-nos que, em vez de subir, os preços iam descer (o que, entretanto, aprendemos também não ser coisa boa) e antecipou que o petróleo chegaria a menos de 40 dólares. Pediu-nos para continuarmos a gastar dinheiro, dispensou-nos (moderadamente) de sermos "verdes" e premiou, com dinheiro dos contribuintes, as empresas comprometidas por erros de gestão, negócios irregulares ou falta de competitividade. Os bancos centrais baixaram as taxas de juros e os governos atribuíram-se a si próprios a deliciosa "obrigação" de aumentar as suas despesas. A preocupação de aumentar os gastos fez até alguns sábios discordarem de cortes fiscais, não porque pudessem desequilibrar os orçamentos, mas por temerem que os contribuintes poupassem o dinheiro que o Estado lhes viesse a deixar no bolso. A banca passou a ser censurada pela relutância em emprestar.Entre a "crise do petróleo" no Verão e a "crise financeira" no Outono, nunca terá havido um ano tão esquizofrénico como 2008. Estivemos obcecados com a inflação num momento, apenas para agonizarmos sobre a deflação no seguinte. Culparam-nos por esbanjarmos, para logo depois nos acusarem de sermos prudentes. Dir-me-ão: mas faz todo o sentido. A moral em tempo de vacas gordas não pode ser a mesma que em tempo de vacas magras. E esta é, no fundo, a questão: faz algum sentido perguntar qual é, em princípio, a melhor forma de vida ou o melhor modelo social - ou basta-nos comportarmo-nos e organizarmo-nos como permite ou exige a conjuntura? Deveremos ser sempre responsáveis, ambientalistas e competitivos, ou depende do sentido do vento?
O conto de Dickens, muito lembrado nesta época do ano, sugere uma resposta talvez eticamente ambígua. Devidamente flagelado pelos sucessivos espíritos de Natal, o somítico misantropo acaba por aderir ao clube da simpatia e generosidade. No entanto, Scrooge não se corrigiu por ter finalmente compreendido o que era justo em princípio, mas depois de descobrir, de fonte mais ou menos segura, que o caminho da mesquinhez o levaria a um fim triste e desconfortável. No fundo, fez um cálculo: passou a ser bom, apenas porque os espíritos lhe garantiram que a bondade era um investimento vantajoso. Scrooge simboliza uma época: aquela em que a moral passou a depender, não da diferença entre o certo e o errado, mas de um simples cálculo de deve e haver.
Hoje, do ponto de vista moral e de opções de vida, tendemos todos a ser investidores astutos, como Scrooge. Estamos talvez dispostos a mudar, não porque a vida que levamos seja necessariamente errada ou a que podemos levar possa ser mais certa, mas desde que nos dêem a certeza de que uma vida diferente nos trará mais conforto e felicidade. Por isso, quase que admitimos tudo, desde que com as devidas provas e demonstrações de rentabilidade. Seremos "bons" ou "maus", de acordo com o que render mais no momento. A nossa moral é a do catavento.Para termos tantas visitas espirituais como Scrooge, falta-nos ainda uma terceira. Virá em 2009? E que nos dirá o terceiro espírito? Talvez nos pergunte simplesmente: como pensam que devem viver? Eis a questão mais difícil. Provavelmente, continuaremos a esperar pelos acontecimentos para saber o que fazer.
Boas Festas para todos.
Historiador
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