Uma guerra para Obama
Público, 03.12.2008, Rui Ramos
A explicação para o massacre de Bombaim não está no que esteve mal no passado, mas no que estava a correr menos mal
Ainda não sabemos bem o que se passou em Bombaim, nos três dias de massacre da semana passada, mas em contrapartida já sabemos muita coisa sobre a história dos conflitos entre muçulmanos e hindus no subcontinente indiano. Desde as primeiras horas que jornais e televisões procuraram desesperadamente encaixar a nova ofensiva dos jihadistas numa moldura histórica que incluiu, entre outros detalhes, a sangrenta separação à nascença da Índia e do Paquistão e os recorrentes confrontos religiosos em Bombaim. É assim que, no Ocidente, digerimos violências deste género: esgravatando o passado, à procura das causas mais remotas, donde esperamos extrair o princípio de uma solução ou as razões para o cepticismo. Ora bem: e se esta maneira de tentar perceber os acontecimentos nos afastasse, por vezes, do que é mais significativo?De facto, o que mais importa para compreender o assalto anfíbio dos comandos da jihad paquistanesa ao centro de Bombaim não é que muçulmanos e hindus estejam destinados a matar-se uns aos outros na cidade ou o Paquistão e a Índia a fazerem-se guerra, mas precisamente o contrário. Há 15 anos, desde a crise da mesquita de Babri, em Ayodhya, que não há violência em grande escala entre as comunidades de Bombaim. Nunca, como nos últimos tempos, a linha de demarcação entre a Índia e o Paquistão esteve tão quieta. A tal ponto, que se falava da possibilidade de facilitar os contactos entre as populações de um lado e outro. E é precisamente aqui que está a melhor explicação para o massacre de Bombaim: não no que esteve mal no passado, mas no que parecia começar a correr menos mal recentemente, não na fatalidade do confronto, mas na vaga possibilidade de uma evolução.Os explicadores destas coisas tendem sempre a dignificar os terroristas como a expressão extrema de um conflito. E pressupõem que a melhor maneira de os desarmar é extinguir as causas da desavença através de negociações e acordos. Acontece que o primeiro efeito é, muitas vezes, o de assanhar o terrorismo. Porque o terror não é necessariamente ditado por falta de apaziguamento, como gosta de imaginar o pacifismo ocidental, mas frequentemente, perante a possibilidade de um entendimento, por um cálculo racional da parte daqueles que se tornaram profissionais da guerra e já não sabem viver de outra maneira, ou que encaram o arrastamento do conflito como a única via para chegarem aos seus fins políticos.Nada disto devia ser surpreendente. A campanha dos jihadistas que levou ao 11 de Setembro na América começou exactamente quando os presidentes Bush (pai) e Clinton se propuseram mediar entre Israel e os árabes da Palestina, e pareceram registar algum sucesso. O primeiro esforço para provocar um massacre em Nova Iorque, através da destruição do World Trade Center, em 1993, coincidiu com o processo negocial dos acordos de Oslo. A segunda operação jihadista decorreu em paralelo com a produção dos acordos de Camp David de 2000. Os acordos falharam. Mas, se tivessem resultado, teriam sido apenas mais uma razão para o ataque. Há gente para quem quanto melhor, pior.Ao tratá-los como simples "niilistas", esquecemos que os dirigentes e os operacionais da jihad jogam um jogo muito cínico e bem pensado. A faixa de países que vai do Norte de África à Ásia central, quase todos muçulmanos, inclui alguns dos Estados mais fracassados do planeta. O petróleo, subsídios externos ou tráficos ilegais mal disfarçam as limitações de sociedades caóticas, que quase só produzem gente. A bancarrota do nacionalismo socialista, que foi a dieta política das independências, gerou um "desespero cultural" que os jihadistas tentam traduzir numa licença apocalíptica para matar em nome de um império islâmico.Demasiado fracos para derrubarem directamente os regimes locais, os jihadistas parecem apostados em fazê-los cair através de crises de segurança internacional, envolvendo as grandes potências mundiais, que ou são vizinhas (caso da Índia) ou estão ligadas à região por dependências energéticas e correntes migratórias (caso dos EUA e Estados europeus). A estratégia pode vir a falhar, mas faz sentido.Para a vitória final, os senhores da jihad confiam na "bomba demográfica" (só a população do Paquistão duplicou desde 1981) e contam com a "fraqueza" que os ocidentais revelaram no Líbano em 1983 e os soviéticos no Afeganistão em 1989. Desde há um ano, Bush confundiu-os na Mesopotâmia com uma combinação de acordos e escalada militar. Há meses que Obama se propõe aplicar a receita no Hindu-Kush. Os jihadistas já lhe tiraram a vantagem de ser o primeiro a jogar.
Historiador
A explicação para o massacre de Bombaim não está no que esteve mal no passado, mas no que estava a correr menos mal
Ainda não sabemos bem o que se passou em Bombaim, nos três dias de massacre da semana passada, mas em contrapartida já sabemos muita coisa sobre a história dos conflitos entre muçulmanos e hindus no subcontinente indiano. Desde as primeiras horas que jornais e televisões procuraram desesperadamente encaixar a nova ofensiva dos jihadistas numa moldura histórica que incluiu, entre outros detalhes, a sangrenta separação à nascença da Índia e do Paquistão e os recorrentes confrontos religiosos em Bombaim. É assim que, no Ocidente, digerimos violências deste género: esgravatando o passado, à procura das causas mais remotas, donde esperamos extrair o princípio de uma solução ou as razões para o cepticismo. Ora bem: e se esta maneira de tentar perceber os acontecimentos nos afastasse, por vezes, do que é mais significativo?De facto, o que mais importa para compreender o assalto anfíbio dos comandos da jihad paquistanesa ao centro de Bombaim não é que muçulmanos e hindus estejam destinados a matar-se uns aos outros na cidade ou o Paquistão e a Índia a fazerem-se guerra, mas precisamente o contrário. Há 15 anos, desde a crise da mesquita de Babri, em Ayodhya, que não há violência em grande escala entre as comunidades de Bombaim. Nunca, como nos últimos tempos, a linha de demarcação entre a Índia e o Paquistão esteve tão quieta. A tal ponto, que se falava da possibilidade de facilitar os contactos entre as populações de um lado e outro. E é precisamente aqui que está a melhor explicação para o massacre de Bombaim: não no que esteve mal no passado, mas no que parecia começar a correr menos mal recentemente, não na fatalidade do confronto, mas na vaga possibilidade de uma evolução.Os explicadores destas coisas tendem sempre a dignificar os terroristas como a expressão extrema de um conflito. E pressupõem que a melhor maneira de os desarmar é extinguir as causas da desavença através de negociações e acordos. Acontece que o primeiro efeito é, muitas vezes, o de assanhar o terrorismo. Porque o terror não é necessariamente ditado por falta de apaziguamento, como gosta de imaginar o pacifismo ocidental, mas frequentemente, perante a possibilidade de um entendimento, por um cálculo racional da parte daqueles que se tornaram profissionais da guerra e já não sabem viver de outra maneira, ou que encaram o arrastamento do conflito como a única via para chegarem aos seus fins políticos.Nada disto devia ser surpreendente. A campanha dos jihadistas que levou ao 11 de Setembro na América começou exactamente quando os presidentes Bush (pai) e Clinton se propuseram mediar entre Israel e os árabes da Palestina, e pareceram registar algum sucesso. O primeiro esforço para provocar um massacre em Nova Iorque, através da destruição do World Trade Center, em 1993, coincidiu com o processo negocial dos acordos de Oslo. A segunda operação jihadista decorreu em paralelo com a produção dos acordos de Camp David de 2000. Os acordos falharam. Mas, se tivessem resultado, teriam sido apenas mais uma razão para o ataque. Há gente para quem quanto melhor, pior.Ao tratá-los como simples "niilistas", esquecemos que os dirigentes e os operacionais da jihad jogam um jogo muito cínico e bem pensado. A faixa de países que vai do Norte de África à Ásia central, quase todos muçulmanos, inclui alguns dos Estados mais fracassados do planeta. O petróleo, subsídios externos ou tráficos ilegais mal disfarçam as limitações de sociedades caóticas, que quase só produzem gente. A bancarrota do nacionalismo socialista, que foi a dieta política das independências, gerou um "desespero cultural" que os jihadistas tentam traduzir numa licença apocalíptica para matar em nome de um império islâmico.Demasiado fracos para derrubarem directamente os regimes locais, os jihadistas parecem apostados em fazê-los cair através de crises de segurança internacional, envolvendo as grandes potências mundiais, que ou são vizinhas (caso da Índia) ou estão ligadas à região por dependências energéticas e correntes migratórias (caso dos EUA e Estados europeus). A estratégia pode vir a falhar, mas faz sentido.Para a vitória final, os senhores da jihad confiam na "bomba demográfica" (só a população do Paquistão duplicou desde 1981) e contam com a "fraqueza" que os ocidentais revelaram no Líbano em 1983 e os soviéticos no Afeganistão em 1989. Desde há um ano, Bush confundiu-os na Mesopotâmia com uma combinação de acordos e escalada militar. Há meses que Obama se propõe aplicar a receita no Hindu-Kush. Os jihadistas já lhe tiraram a vantagem de ser o primeiro a jogar.
Historiador
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