O papel de embrulho
Público
02.12.2008, Helena Matos
Neste ano que agora finda, dois projectos, também eles estratégicos, sumiram-se por entre as brumas das notícias
"Acontece exactamente um ano depois da cimeira UE-África, e não é por acaso. No próximo dia 9, o primeiro-ministro, José Sócrates, irá anunciar a criação do África.cont, um centro de arte africana contemporânea em Lisboa. Um projecto considerado estratégico para, explicou ao PÚBLICO o secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, João Gomes Cravinho, "a consolidação de Lisboa como espaço euro-africano". Ou, nas palavras de António Costa, presidente da Câmara Municipal de Lisboa (CML), para "perpetuar esta realidade de Lisboa ser a ponte entre a Europa e África" - lia-se no PÚBLICO do passado sábado. Como em todas as notícias sobre a cultura nascida por alto patrocínio estatal temos o inevitável festival de cinema, a "mesa-redonda com intelectuais e agentes culturais" e um arquitecto estrangeiro que umas revistas igualmente estrangeiras definem como "estrela da moda" e que já cá esteve para ver "o espaço e ficou muito excitado com o projecto". Oficialmente a gestão será tripartida "com o Estado, a CML e os privados que entretanto aderirem ao projecto a assumir os custos de funcionamento". Deixando para outra oportunidade esta concepção da CML como um organismo não estatal - concepção indispensável no caso para fazer de conta que, tudo espremido, existe alguém para lá do contribuinte português disponível para sustentar mais este "projecto considerado estratégico" -, o que nos sobra são estas declarações, rigorosamente iguais a outras sobre outros projectos considerados estratégicos e que resultaram em vazio e ridículo.
Assim, de repente, que me recorde, neste ano que agora finda, dois projectos, também eles considerados estratégicos, sumiram-se por entre as brumas das notícias. Por exemplo, alguém se lembra ainda de quando Lisboa ia "acolher o primeiro centro Hermitage da Península Ibérica"? Ou melhor, alguém se lembra de como tudo terminou? Porque entre começar e terminar, a vida do Hermitage lisboeta foi apenas um fogacho mediático: tudo começou em 2006, com notícias que pareciam glosas épicas ao mote dado pelo comunicado do Ministério da Cultura anunciando que Lisboa ia ser o "pólo ibérico do Hermitage". Entretanto, a penúria agravava-se nos outros museus. Mas nada disso contava. O Hermitage era imprescindível, tão imprescindível que nem se percebia como se tinha vivido sem este protocolo. Em 2007, fez-se a primeira (e também a única!) das três exposições agendadas para Portugal e que precederiam a inauguração do dito pólo ibérico do Hermitage. Em 2008, Mikhail Piotorovsky, director do Museu Hermitage, colocou um ponto final nesta ficção museológica ao declarar: "Percebemos que Portugal não tem dinheiro para este tipo de exposição." E, sem mais explicações, acabou-se o Hermitage lisboeta. Todo este delírio kremliniano custou aos portugueses um milhão e meio de euros e presume-se que a corte lisboeta do dito Hermitage ibérico deve estar a aprender a fazer chá num samovar - coisa difícil, como se sabe - ou a desmontar marioskas, porque até este momento ninguém se dignou explicar o que levou, em primeiro lugar, a esta opção e depois ao seu encerramento.
O segundo projecto que, parafraseando o secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, João Gomes Cravinho, o Governo considerou estratégico para o país dá ou dava pelo nome de Museu Mar da Língua Portuguesa. Na verdade, não sei que tempo verbal devo usar e muito menos que modo ou até que termos, pois o Museu Mar da Língua Portuguesa é um caso fantástico desse universo do anúncio do anúncio que constitui aquilo a que chamamos "notícias sobre a cultura", mas que pouco mais são que ampliações sobre notas de imprensa ministeriais e autárquicas.
No final de 2006, a então ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, definia como "projecto prioritário" o Museu Mar da Língua Portuguesa e explicava que o mesmo deveria ser instalado no Museu de Arte Popular. Quanto ao acervo do Museu de Arte Popular (pelo qual o Ministério da Cultura tem mostrado um fastio inultrapassável!), seria nuns dias disperso por vários museus e, noutros, integralmente transferido para o Museu Nacional de Etnologia. Essencial era a localização em frente ao Tejo, pois, além do conceito de "mar da língua", o museu teria também uma ala que funcionaria como Centro Interpretativo das Descobertas. Tudo parecia perfeito: o Museu Mar da Língua Portuguesa receberia 200 mil visitantes por ano, teria um Labirinto das Palavras, o património seria substituído pela tecnologia e o museu custaria dois milhões e meio de euros, segundo as informações do final de 2006. Em meados de 2007, o Museu Mar da Língua Portuguesa já estava orçamentado em três milhões e meio de euros, mas a data da abertura era dada como certa para Julho de 2008. Em Março deste ano, o ministro Pinto Ribeiro mostrou-se duvidoso sobre a possibilidade de o Museu Mar da Língua Portuguesa ser inaugurado em 2008 e, em Outubro, quiçá numa homenagem à tecnologia de efeitos especiais que desde o seu anúncio o envolve, o Museu Mar da Língua Portuguesa apareceu novamente nas notícias mercê duma deslocalização. Ou, mais propriamente, como o museu não existe, pode dizer-se que enquanto objecto virtual sofreu uma mudança também ela virtual de localização ideal para outra localização igualmente ideal. Ou seja, a localização ideal da beira-Tejo foi agora transferida para Bragança. O autarca desta cidade acredita que "Bragança é o lugar ideal para a instalação deste espaço, porque está na confluência de dois mundos fundamentais da língua portuguesa, Portugal e a Galiza". Do Brasil e da Galiza já se arranjaram uns nomes para apoiar o projecto bragantino, tal como antes outros tinham apoiado a opção beira-Tejo e falado dela, nomeadamente na imprensa brasileira, como se de facto já estivesse concretizada, porque em Portugal não há nada que prove tanto a excelência duma ideia quanto o facto de ser apoiada por um ser ao qual possamos chamar estrangeiro. Se no próximo ano o Museu Mar da Língua Portuguesa na sua versão lisboeta ou Museu da Língua Portuguesa na sua versão bragantina aparecer como Museu Subaquático da Língua Portuguesa e atirado para uma daquelas fossas atlânticas dos Açores, não causará espanto nem indignação. Porque a política cultural tornou-se uma efabulação sobre anúncios.
Espero bem que o África.cont não seja, à semelhança dos exemplos anteriores, mais uma bola de sabão nascida nessa vacuidade ignorantíssima que tantas vezes se chama "política cultural" e que, mais grave ainda do que usar irresponsavelmente os dinheiros e os bens públicos, se tem servido deles para sustentar clientelas, no sentido romano do termo. Mas temo ter razão. A informação que o Ministério dos Negócios Estrangeiros e a CML fizeram chegar ao PÚBLICO confirma, a par das megalomanias lusas do costume, a concepção, tão típica do Governo Sócrates, da cultura enquanto papel de embrulho.
Jornalista
- Mais uma vez tivemos a comemoração do Dia sem Compras. Devidamente convocado para um sábado por umas almas certamente isentas de constrangimentos horários e orçamentais, pois a esmagadora maioria dos portugueses não só trabalha durante a semana, como está a confrontar-se com dificuldades que os levam a reduzir as compras, que apelaram "a outra forma de vida" onde se inclui o não fazer compras: "Devemos reduzir o consumo ao essencial, receber o que o planeta tem para nos dar sem o destruir" - dizia o comunicado do GAIA - Grupo de Acção e Intervenção, promotor da efeméride. Contudo, o mais espantoso não é o teor destas propostas, mas sim o reflexo pavloviano que estes dislates geram nas redacções. Imediatamente um repórter parte de microfone em punho para inquirir não os autores destas propostas, mas sim quem ousa contrariá-las. O tom adoptado nas perguntas é mais ou menos o mesmo com que no passado, no mundo cristão, se confrontavam aqueles que comiam carne na Semana Santa. Porém, e aproveitando este apelo do GAIA, teria sido interessante perceber exactamente o que entende aquela organização - que se tornou conhecida dos portugueses aquando da destruição dum campo de milho transgénico no Algarve - não apenas por um mundo sem compras mas sim por "acção directa"? No próximo fim-de-semana, o GAIA leva a cabo, no Porto, uma "oficina activa" de "acção directa". Se um dia sem compras é difícil de imaginar, já as consequências daquilo a que se tem chamado "acção directa" são bem fáceis de entrever. É mesmo de acção directa que o GAIA está a falar? E já agora directa sobre quem?
Comentários