O que o Banco Alimentar faz que mais ninguém faz
Público, 24.12.2008, José Manuel Fernandes
É tempo de recuperar a ideia de Fraternidade que nos envolve e responsabiliza em lugar de nos ficarmos pela Solidariedade que delegamos no Estado para mais tarde a ela termos também direito
Hoje é certo e sabido que se realizarão, um pouco por todo o país, "ceias de Natal" para os pobres, para os sem-abrigo, para muitos idosos que vivem sozinhos. Aqui e além aparecerá uma autoridade pública que sublinhará a importância de não nos esquecermos dos mais fracos e desvalidos. É assim há muitos anos e até custa imaginar como poderiam as televisões encher os seus intermináveis serviços noticiários de uma hora sem um "directo" para uma destas "ceias". A maioria destes encontros é proporcionada por instituições de solidariedade social. E grande parte dessas instituições está, de uma forma ou outra, ligada à Igreja Católica. Por regra, também não servem apenas aquela refeição especial: todos os dias do ano apoiam os mais desfavorecidos, como sucede com a Comunidade Vida e Paz, que já ofereceu, nos dias 19, 20 e 21, as suas refeições de Natal na Cantina da Cidade Universitária de Lisboa. Já no Porto, só para hoje, há iniciativas dos Albergues Nocturnos, uma instituição fundada em 1881, do Coração da Cidade, da Paróquia da Campanhã e da Missão de Caridade dos Samaritanos. Mas se estas iniciativas têm a cobertura quase rotineira da comunicação social, é mais raro tomar contacto com o trabalho de formiga dos voluntários que, todos os dias, todas as noites, percorrem as ruas de muitas das nossas cidades a dar apoio aos sem-abrigo. Só a Comunidade Vida e Paz distribui, na zona de Lisboa, 800 sanduíches por dia. E muitas são para dar a pessoas que até trabalham, têm emprego mas vivem na rua, ou acolhem-se de forma precária em abrigos como o que AMI mantém em Lisboa, como se relatava este domingo no PÚBLICO. Esta rede invisível - e muitas vezes apenas invisível porque viramos os olhos para não sermos confrontados com a realidade - existe porque existem voluntários de todas as horas, não apenas os que pelo Natal se lembram dos mais pobres. E esta rede invisível funciona porque todos os que a integram não esqueceram o valor da terceira valência da Revolução Francesa: a Fraternidade. Num tempo em que todas as palavras têm um significado, não deixa de ser significativo como a ideia de "fraternidade" quase desapareceu do nosso léxico, sendo substituída por uma dualidade: a "caridade" que facilmente se critica por ser "cristã" e a "solidariedade" que se está sempre a exigir a essa entidade abstracta que é o Estado. Ora a verdade é que esta última, por ser remetida para outrem, por ser mais depressa entregue a quem vive melhor com a burocracia do que com os seres humanos, é sempre, será sempre incompleta. Já a ideia de "fraternidade", por nos envolver mais directamente, por não distinguir entre a "caridade" praticada pelos indivíduos ou a "solidariedade social" delegada no Estado, devia regressar ao nosso léxico político e cultural.Na verdade, o assumir pela sociedade civil - isto é, pelos cidadãos de corpo inteiro da nossa comunidade - de tarefas de pura e desinteressada Fraternidade é mais do que aliviar a consciência ou agir isoladamente. É ir até onde instituições como o Banco Alimentar contra a Fome foram capazes de chegar e mais ninguém, sobretudo o Estado, alguma vez chegaria.O segredo do Banco Alimentar é ser a rede ainda mais invisível da tal rede invisível de que falámos atrás. O segredo do Banco Alimentar não está nas recolhas regulares de alimentos, que sensibilizam a população e que este ano, apesar da crise, ou por ser de crise, renderam mais do que em anos anteriores. O segredo está na rede de recolha de alimentos que seriam destruídos pelas grandes redes de distribuição e ser capaz de os colocar onde são necessários, onde fazem falta. Não em qualquer guichet onde se tira senha, mas nas creches, nos lares, nos abrigos, em todas as instituições onde servir uma refeição melhor faz toda a diferença. Muitos que são ajudados pelo Banco Alimentar nem suspeitam que o são. As empresas que contribuem com o grosso dos alimentos que distribui também não reclamam publicidade ou qualquer abatimento nos impostos. Pelo contrário.Nesta época do ano, onde é fácil pregar a generosidade, é importante lembrar o que há para além das simpáticas, acolhedores mas pouco mais do que simbólicas "ceias de Natal" mais ou menos mediatizadas. E perceber como uma Fraternidade que implica a nossa co-responsabilização é inseparável da Liberdade e da Igualdade, valores que preservamos e pelos quais também não podemos deixar de, com o sempre presente sentido de responsabilidade individual, lutar em cada dia que passa.Até porque estas redes invisíveis são mais importantes para aumentar o capital social de um país do que outras redes gongoricamente anunciadas e alegremente subutilizadas. Porque umas são feitas de pessoas para servir pessoas, e as outras por vezes não se sabem de onde vêm nem para onde vão. Nada como dias de crise para tornar ainda mais visível o contraste entre a importância crucial do invisível, mas recompensador, e o que é tantas vezes apenas muito fogo-de-artifício.
É tempo de recuperar a ideia de Fraternidade que nos envolve e responsabiliza em lugar de nos ficarmos pela Solidariedade que delegamos no Estado para mais tarde a ela termos também direito
Hoje é certo e sabido que se realizarão, um pouco por todo o país, "ceias de Natal" para os pobres, para os sem-abrigo, para muitos idosos que vivem sozinhos. Aqui e além aparecerá uma autoridade pública que sublinhará a importância de não nos esquecermos dos mais fracos e desvalidos. É assim há muitos anos e até custa imaginar como poderiam as televisões encher os seus intermináveis serviços noticiários de uma hora sem um "directo" para uma destas "ceias". A maioria destes encontros é proporcionada por instituições de solidariedade social. E grande parte dessas instituições está, de uma forma ou outra, ligada à Igreja Católica. Por regra, também não servem apenas aquela refeição especial: todos os dias do ano apoiam os mais desfavorecidos, como sucede com a Comunidade Vida e Paz, que já ofereceu, nos dias 19, 20 e 21, as suas refeições de Natal na Cantina da Cidade Universitária de Lisboa. Já no Porto, só para hoje, há iniciativas dos Albergues Nocturnos, uma instituição fundada em 1881, do Coração da Cidade, da Paróquia da Campanhã e da Missão de Caridade dos Samaritanos. Mas se estas iniciativas têm a cobertura quase rotineira da comunicação social, é mais raro tomar contacto com o trabalho de formiga dos voluntários que, todos os dias, todas as noites, percorrem as ruas de muitas das nossas cidades a dar apoio aos sem-abrigo. Só a Comunidade Vida e Paz distribui, na zona de Lisboa, 800 sanduíches por dia. E muitas são para dar a pessoas que até trabalham, têm emprego mas vivem na rua, ou acolhem-se de forma precária em abrigos como o que AMI mantém em Lisboa, como se relatava este domingo no PÚBLICO. Esta rede invisível - e muitas vezes apenas invisível porque viramos os olhos para não sermos confrontados com a realidade - existe porque existem voluntários de todas as horas, não apenas os que pelo Natal se lembram dos mais pobres. E esta rede invisível funciona porque todos os que a integram não esqueceram o valor da terceira valência da Revolução Francesa: a Fraternidade. Num tempo em que todas as palavras têm um significado, não deixa de ser significativo como a ideia de "fraternidade" quase desapareceu do nosso léxico, sendo substituída por uma dualidade: a "caridade" que facilmente se critica por ser "cristã" e a "solidariedade" que se está sempre a exigir a essa entidade abstracta que é o Estado. Ora a verdade é que esta última, por ser remetida para outrem, por ser mais depressa entregue a quem vive melhor com a burocracia do que com os seres humanos, é sempre, será sempre incompleta. Já a ideia de "fraternidade", por nos envolver mais directamente, por não distinguir entre a "caridade" praticada pelos indivíduos ou a "solidariedade social" delegada no Estado, devia regressar ao nosso léxico político e cultural.Na verdade, o assumir pela sociedade civil - isto é, pelos cidadãos de corpo inteiro da nossa comunidade - de tarefas de pura e desinteressada Fraternidade é mais do que aliviar a consciência ou agir isoladamente. É ir até onde instituições como o Banco Alimentar contra a Fome foram capazes de chegar e mais ninguém, sobretudo o Estado, alguma vez chegaria.O segredo do Banco Alimentar é ser a rede ainda mais invisível da tal rede invisível de que falámos atrás. O segredo do Banco Alimentar não está nas recolhas regulares de alimentos, que sensibilizam a população e que este ano, apesar da crise, ou por ser de crise, renderam mais do que em anos anteriores. O segredo está na rede de recolha de alimentos que seriam destruídos pelas grandes redes de distribuição e ser capaz de os colocar onde são necessários, onde fazem falta. Não em qualquer guichet onde se tira senha, mas nas creches, nos lares, nos abrigos, em todas as instituições onde servir uma refeição melhor faz toda a diferença. Muitos que são ajudados pelo Banco Alimentar nem suspeitam que o são. As empresas que contribuem com o grosso dos alimentos que distribui também não reclamam publicidade ou qualquer abatimento nos impostos. Pelo contrário.Nesta época do ano, onde é fácil pregar a generosidade, é importante lembrar o que há para além das simpáticas, acolhedores mas pouco mais do que simbólicas "ceias de Natal" mais ou menos mediatizadas. E perceber como uma Fraternidade que implica a nossa co-responsabilização é inseparável da Liberdade e da Igualdade, valores que preservamos e pelos quais também não podemos deixar de, com o sempre presente sentido de responsabilidade individual, lutar em cada dia que passa.Até porque estas redes invisíveis são mais importantes para aumentar o capital social de um país do que outras redes gongoricamente anunciadas e alegremente subutilizadas. Porque umas são feitas de pessoas para servir pessoas, e as outras por vezes não se sabem de onde vêm nem para onde vão. Nada como dias de crise para tornar ainda mais visível o contraste entre a importância crucial do invisível, mas recompensador, e o que é tantas vezes apenas muito fogo-de-artifício.
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