DE COMO SER GENIALMENTE PORTUGUÊS
Diário de Notícias, 20081211
Maria José Nogueira Pinto Jurista
Nascida e criada a dois passos do Museu Rafael Bordalo Pinheiro conservo como uma das mais lúdicas memórias da infância, a extraordinária composição do Lobo e Gru - para mim lobo e cegonha - prova provada da realidade da fábula, La Fontaine em faiança policromada, a cegonha (afinal gru) mal disfarçando um olhar trocista, sobre as fauces do lobo à sua mercê, sem uivo que se ouvisse ou sequer esboçasse, na aflição do osso entalado na goela.
Chego a Óbidos numa tarde cor de chumbo, o céu carregado de água, e vou direita à Galeria Ogiva onde está a exposição comemorativa do centenário da Fábrica Bordalo Pinheiro (1908-2008), com a alegria que antecipa os encontros promissores. Num espaço convenientemente despido, os meus olhos saltam livremente de uma gigantesca moldura coberta de frutos, como um Arcimboldo, para a composição dos Cogumelos, numa multiplicidade de castanhos e verdes que um soberbo vidrado orvalhou. Os lagartões de cauda enrolada convivem com cabeças de touro em tamanho natural e uma de burro, particularmente irónica, enquanto as cobras parecem evoluir no espaço aberto e o macaco, as patas agarradas à corda, ameaça saltar a qualquer momento. Sigo um percurso que as próprias peças me impõem e sinto-me mais observada do que observadora, como se naquele espaço que dominam, fossem elas que viessem ao meu encontro, só me restando deixar-me surpreender. O lobo lá está, as fauces vermelhas como as do seu homónimo, comedor de avós e capuchinhos. O golfinho e os cavalos marinhos são magníficas peças de espaço público, tristemente sem espaço em Portugal... Numa parede, ao fundo, sobre o branco da cal, um enorme bando de andorinhas parece estar de abalada.No piso seguinte dou com os gigantescos pratos onde, com volúpia, se dispõem peças de caça, frutos outonais, mariscos de grande porte. Encontro o "Escarrador. Gato Bizantino" e o pequeno rato cinzento, empoleirado na ponta, prestes a saltar. Mas logo o meu olhar, tão solto e livre naquele espaço, é solicitado pelo amarelão dos girassóis, ora abraçados à grande jarra, ora transbordando do gigantesco prato. Mais delicadas, as jarras pequenas, sempre daquele castanho vigoroso, recebem a convivência de flores e frutos caprichosamente entrelaçados, e numa delas, em milagroso equilíbrio, perfeito na forma, cor e proporção, um pequeno pássaro pousa num único e subtil movimento. Depois do grande pote para o qual trepa um organizado grupo de rãs, tenho um encontro inesperado com a personagem de vida própria que é o "Gato Assanhado" que me conduz às figurinhas cheias de humor do "sacristão" do "janota", da "Maria Paciência" e o "Toma" na Barrica do nosso Zé Povo. Quando chego junto dos caranguejos, quase obsessivos, sento-me para me encher daquelas cores únicas, entre o fogo e o rubi, o rosa e o coral. Não é só a dimensão das peças expostas, as suas formas ou mesmo o milagre daquele desdobrar de cores e tonalidades, azuladas, esverdeadas, vermelhas, castanhas, oriundas da terra, do ar, da água, do fogo. É algo mais decisivo, imperativo, que tem a ver com força e delicadeza, arrojo e beleza, mãos que criam formas, equilíbrios, surpreendentes efeitos visuais. Como diz João Bonifácio Serra "...a obra de Bordalo não é produto, é produtora, não é resultado, é constituinte."
Saio, pensando em como é ingrato ser génio em Portugal. Bordalo sonhou "a nação do Quai D'Orsay" e arrematou o prémio na Exposição de 1889, em Paris. O filho, Manuel Gustavo, fundou a Fábrica Bordalo Pinheiro, em 1908, e sonhou com a abertura dos mercados europeu e americano. Ramalho Ortigão acreditou que nas Caldas "reflorescesse" uma forma plástica de "arte portuguesa" e de "expressão popular". Apesar das vicissitudes, a fábrica lá está, mas são poucos os que conhecem a verdadeira potencialidade do seu labor. Esta exposição é tão importante como reveladora: pondo à vista o que há muito não se vê, é como um acto inaugural de um novo tempo de devolução da arte deste génio ao merecido domínio público, a todos nós, portugueses.
Maria José Nogueira Pinto Jurista
Nascida e criada a dois passos do Museu Rafael Bordalo Pinheiro conservo como uma das mais lúdicas memórias da infância, a extraordinária composição do Lobo e Gru - para mim lobo e cegonha - prova provada da realidade da fábula, La Fontaine em faiança policromada, a cegonha (afinal gru) mal disfarçando um olhar trocista, sobre as fauces do lobo à sua mercê, sem uivo que se ouvisse ou sequer esboçasse, na aflição do osso entalado na goela.
Chego a Óbidos numa tarde cor de chumbo, o céu carregado de água, e vou direita à Galeria Ogiva onde está a exposição comemorativa do centenário da Fábrica Bordalo Pinheiro (1908-2008), com a alegria que antecipa os encontros promissores. Num espaço convenientemente despido, os meus olhos saltam livremente de uma gigantesca moldura coberta de frutos, como um Arcimboldo, para a composição dos Cogumelos, numa multiplicidade de castanhos e verdes que um soberbo vidrado orvalhou. Os lagartões de cauda enrolada convivem com cabeças de touro em tamanho natural e uma de burro, particularmente irónica, enquanto as cobras parecem evoluir no espaço aberto e o macaco, as patas agarradas à corda, ameaça saltar a qualquer momento. Sigo um percurso que as próprias peças me impõem e sinto-me mais observada do que observadora, como se naquele espaço que dominam, fossem elas que viessem ao meu encontro, só me restando deixar-me surpreender. O lobo lá está, as fauces vermelhas como as do seu homónimo, comedor de avós e capuchinhos. O golfinho e os cavalos marinhos são magníficas peças de espaço público, tristemente sem espaço em Portugal... Numa parede, ao fundo, sobre o branco da cal, um enorme bando de andorinhas parece estar de abalada.No piso seguinte dou com os gigantescos pratos onde, com volúpia, se dispõem peças de caça, frutos outonais, mariscos de grande porte. Encontro o "Escarrador. Gato Bizantino" e o pequeno rato cinzento, empoleirado na ponta, prestes a saltar. Mas logo o meu olhar, tão solto e livre naquele espaço, é solicitado pelo amarelão dos girassóis, ora abraçados à grande jarra, ora transbordando do gigantesco prato. Mais delicadas, as jarras pequenas, sempre daquele castanho vigoroso, recebem a convivência de flores e frutos caprichosamente entrelaçados, e numa delas, em milagroso equilíbrio, perfeito na forma, cor e proporção, um pequeno pássaro pousa num único e subtil movimento. Depois do grande pote para o qual trepa um organizado grupo de rãs, tenho um encontro inesperado com a personagem de vida própria que é o "Gato Assanhado" que me conduz às figurinhas cheias de humor do "sacristão" do "janota", da "Maria Paciência" e o "Toma" na Barrica do nosso Zé Povo. Quando chego junto dos caranguejos, quase obsessivos, sento-me para me encher daquelas cores únicas, entre o fogo e o rubi, o rosa e o coral. Não é só a dimensão das peças expostas, as suas formas ou mesmo o milagre daquele desdobrar de cores e tonalidades, azuladas, esverdeadas, vermelhas, castanhas, oriundas da terra, do ar, da água, do fogo. É algo mais decisivo, imperativo, que tem a ver com força e delicadeza, arrojo e beleza, mãos que criam formas, equilíbrios, surpreendentes efeitos visuais. Como diz João Bonifácio Serra "...a obra de Bordalo não é produto, é produtora, não é resultado, é constituinte."
Saio, pensando em como é ingrato ser génio em Portugal. Bordalo sonhou "a nação do Quai D'Orsay" e arrematou o prémio na Exposição de 1889, em Paris. O filho, Manuel Gustavo, fundou a Fábrica Bordalo Pinheiro, em 1908, e sonhou com a abertura dos mercados europeu e americano. Ramalho Ortigão acreditou que nas Caldas "reflorescesse" uma forma plástica de "arte portuguesa" e de "expressão popular". Apesar das vicissitudes, a fábrica lá está, mas são poucos os que conhecem a verdadeira potencialidade do seu labor. Esta exposição é tão importante como reveladora: pondo à vista o que há muito não se vê, é como um acto inaugural de um novo tempo de devolução da arte deste génio ao merecido domínio público, a todos nós, portugueses.
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