60º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos - Um novo Direito das gentes

ACEPRENSA

Assinado por Antonio R. Rubio
Data: 11 Dezembro 2008

O 60º aniversário da aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Assembleia-Geral das Nações Unidas é muito mais que uma efeméride histórica. Se queremos falar de direitos humanos, não basta uma perspectiva positivista e formalista. Já no momento da aprovação, alguns pensadores como o libanês Charles Malik, relator do texto da Declaração, exprimiram a sua inquietação sobre um conceito dos direitos humanos que se recusava a reflectir sobre o seu fundamento.

As leituras e comentários que se têm feito do texto ao longo da sua história têm-lhe dado razão e exprimem como, por detrás de sucessivas interpretações, se subentendem visões opostas da natureza humana.

Protagonista: o ser humano

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em Paris a 10 de Dezembro de 1948, produziu bibliografia inumerável no âmbito do Direito Internacional. Para muitos, com ela se inaugura o Direito Internacional contemporâneo, cujo protagonista é o ser humano, em contraposição com o Direito Internacional clássico, em cujo centro estava a soberania dos Estados.

Há quem o tenha classificado como um novo Direito das gentes. Mas são muitos os Estados no mundo, potências emergentes ou novos países independentes, que continuam a identificar o Direito Internacional com a primazia do princípio da soberania estatal. Contudo, um certo optimismo antropológico caracterizou aqueles que têm querido fazer do Direito Internacional uma espécie de Direito dos direitos humanos. Converteram os direitos em sinónimo inapelável da justiça e incorreu-se assim num forte formalismo jurídico que não só iludiu o tema da fundamentação dos direitos mas também a análise dos antecedentes históricos da Declaração, imprescindível à hora de interpretar a vontade do legislador.

Um milagre na Guerra Fria

Não deixa de ser quase um milagre que em plena Guerra Fria, no ano do golpe de Praga, do bloqueio de Berlim e das tensões entre as duas Coreias, se aprovasse um texto desta natureza. Talvez se ficasse a dever também a que a ONU era formada só por 58 países, em vez dos quase 200 actuais, porque se hoje se colocasse pela primeira vez a redacção da Declaração, os obstáculos seriam muito maiores do que em 1948.

Vivemos em tempos de reivindicações de autodeterminação, soberania nacional e desenvolvimento económico. E os Estados soberanos têm-se multiplicado quase por quatro, sendo fácil nestas últimas décadas confundir a independência dos Estados com a liberdade dos povos. Daí que seja plenamente justificada a tradicional critica ao preâmbulo da Carta da ONU no sentido de que se refere a "Nós, os Povos", em vez de a "Nós, os Estados".

Além do mais, no preâmbulo da Carta da ONU faz-se referência a "reafirmar a nossa fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos de homens e mulheres". Contudo, no artigo primeiro, relativo aos propósitos das Nações Unidas, os direitos humanos ocupam um lugar secundário como um dos âmbitos da cooperação internacional. O facto de a Carta não conter uma relação de direitos foi um dos motivos para elaborar a Declaração, ainda que esta não estivesse dotada de carácter jurídico. Mas era evidente, como assegura a jurista norte-americana Mary Ann Glendon, que os direitos humanos da Carta apenas representam "a linha vacilante numa rede de poder e interesses".

Os que se opunham

Vladimir Koretsky, professor de Direito Internacional e representante soviético no comité redactor do projecto de Declaração, deu-se conta imediatamente do valor dos direitos humanos como arma ideológica. No seu relatório ao Kremlin assinalou que a futura Declaração "tornaria mais simples intervir nos assuntos internos dos Estados soberanos". A sua recusa da declaração provinha do seu conhecimento de que o homem carece de direitos por oposição à comunidade.

Daí que outro delegado soviético, Alexei Pavlov, insistisse posteriormente em acrescentar à maioria dos artigos do texto a nota arbitrária de que os elementos fascistas e anti-democráticos não gozariam dos direitos humanos, ideia que no fundo seguem partilhando todos aqueles que querem monopolizar o conceito de democracia e de direitos humanos.

Mas não só os soviéticos se opunham a uma Declaração que consideravam pouco respeitadora da soberania estatal, argumento paradoxal por parte dos que diziam defender uma ideologia com vocação universal. Também estava contra uma teocracia como a Arábia Saudita, ao ver uma imposição dos padrões ocidentais nos artigos referentes ao matrimónio e à liberdade religiosa.

Por sua parte, a África do Sul do apartheid opunha-se ao termo "dignidade" contido no artigo primeiro, e recusava estar a violar a dignidade humana pela existência de uma norma que obrigava as diferentes raças a viver em territórios separados. Além do mais considerava que o texto tinha ido muito mais longe do que as disposições da Carta, ao conter um elenco de direitos económicos e sociais. Estes seriam alguns dos principais motivos pelo qual os sauditas, os sul-africanos e seis regimes comunistas se abstiveram na votação final.

Charles Malik, defensor da liberdade

Eleanor Roosevelt, viúva do presidente, e o jurista francês René Cassin figuram entre as personalidades mais conhecidas do comité de oito pessoas que elaborou o projecto de Declaração. Mas o relator do texto foi o filósofo e diplomata libanês Charles Malik (1906-1987), mais tarde presidente do Conselho Económico e Social e presidente da Comissão de Direitos Humanos. Não era um político profissional nem um especialista em leis, como alguns dos seus companheiros, mas a sua formação filosófica e a sua fé de cristão ortodoxo fizeram dele uma pessoa acertada para compreender o alcance real da Declaração e o que a humanidade nela jogava.

Por exemplo, o libanês seria o principal artífice do artigo 18, sobre a liberdade religiosa, onde preconizou o direito de mudar de religião, o direito individual e colectivo de manifestar a própria religião ou crença em privado e em público. Um preceito que não podia agradar a determinados Estados muçulmanos.

Malik dedicou a sua vida diplomática e universitária à defesa da concepção iusnaturalista dos direitos humanos. Daí que sempre insistisse em que a pergunta insofismável ao falar dos direitos é: O que é o homem? Opunha-se certamente ao colectivismo comunista, e ainda também à visão de um indivíduo portador de direitos radicalmente autónomo como preconizavam alguns países ocidentais, muito seguros de que a riqueza e a prosperidade bastavam para satisfazer as ânsias do ser humano.

Malik coincidia com os soviéticos em considerar a Declaração como uma potente arma ideológica, no seu caso a de valorizar o homem e a sua liberdade acima de tudo. No seu discurso, a liberdade ocupava um lugar central, com os ecos de uma história libanesa em que as minorias sempre lutaram pela liberdade das suas consciências. Por isso nas suas obras e intervenções públicas abundam as alusões à necessidade de seguir livremente os imperativos da consciência. Malik era consciente do individualismo que dominava o homem moderno, situação na qual o conceito de verdade era reduzido a um assunto de conveniência pragmática.

O Estado ao serviço do homem

Mas além do mais insistia na importância das instituições intermédias entre o Estado e os indivíduos, tais como a família ou a Igreja. Chegou mesmo a advertir que se a Declaração não criasse as condições necessárias para o homem desenvolver a sua lealdade para com esses corpos intermédios, que ele considerava como fontes de liberdade, "teríamos legislado não para a liberdade do homem mas para a sua virtual escravidão"..

Como contraponto dos direitos, o filósofo reconheceu a importância do artigo 29, no qual se fala dos deveres de toda a pessoa a respeito da comunidade, posto que só nela se pode desenvolver livre e plenamente a sua personalidade. Malik considerava que era uma nuance apropriada, porque não se têm direitos a respeito de qualquer comunidade, e menos ainda quando se pretende converter o Estado em equivalente à comunidade, como tem feito o totalitarismo "duro" ou "brando".

Daí se depreendce que a forma organizada da sociedade, que é o Estado, tem que estar ao serviço do homem, e não ao contrário. Não obstante, Malik assumia que numa época de crescente intervenção do Estado, será difícil convencer o homem sobre qual teria de ser a sua escala de valores. E por fim terminará por procurar os seus direitos não na ordem natural, mas sim no seu governo ou nas Nações Unidas. Acolher-se-á inclusivamente para os obter no "último estádio da evolução". Uma intuição que se verifica hoje quando se concebe a lei positiva como única fonte de todos os direitos. É a última consequência da verdadeira crise dos direitos humanos. Segundo Malik, chega-se a ela quando as pessoas deixam de acreditar que têm "direitos naturais, inerentes e inalienáveis".

Antonio R. Rubio

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