É Natal!

Público, 21.12.2008, Faranaz Keshavjee

Que bondade pode existir na abundância por um dia e na experiência da miséria e solidão nos restantes 364 dias do ano?

Quando o Profeta Muhammad começou a partilhar o Alcorão, foi desafiado a fazer um milagre para confirmar a divindade das suas palavras. Muhammad respondeu: não sou milagreiro. Se procuram milagres, olhem à vossa volta, na natureza e no cosmos, e olhem para dentro de vós mesmos e nas transformações humanas, e neles verão ayats (sinais) de Deus. Esses são milagres!
No Natal observo vários milagres: a generosidade social; os abraços fraternos que damos; o sorriso sentido às crianças, idosos, pobres e ricos desejando o melhor da vida; e as mais belas experiências de amor, de fé, de ternura, independentemente das nossas crenças. Políticos, cientistas, académicos, comerciantes, judeus, muçulmanos, hindus, budistas, ninguém escapa a estas expressões humanas. É que, mais do que acreditar em Deus, acreditamos em nós mesmos, nas pessoas, no bem que podemos fazer uns aos outros, e na grande diferença que sabemos que podemos fazer, às vezes com gestos muito pequenos.
Acima de tudo, é o ser humano que importa, na sua unidade e fraternidade. Foi este o Simurgh - o Grande Pássaro - que Farid ud-Din Attar nos mostrou na sua magnífica obra A Conferência dos Pássaros. Quando milhões de pássaros partiram à procura do Grande Pássaro, o líder dos líderes, aquele que os iria orientar e levá-los à vida da abundância e da prosperidade, e sabedoria, eis que chegados apenas 30, todos rotos, partidos, de rastos mesmo, Simurgh não lhes aparece, nem quer saber que estão à Sua espera... Olhando uns para os outros, recordando as duras experiências dessa longa e penosa viagem até ao lugar do Simurgh, os 30 pássaros percebem, finalmente, que Seh são 30, e murgh significa pássaros. Afinal, o Simurgh era a unidade dos pássaros.
O Natal é uma época em que estes valores ressurgem. Pena que aconteça só uma vez por ano. Porque passados estes dias, celebrados finalmente em folias de revéillon, todos se esquecem de todos e regressam ao seu individualismo e egocentrismo, não há tempo para nada nem para ninguém.
A caridade não devia reduzir-se a uns dias do ano. A caridade, no conceito muçulmano, e creio que também no mundo cristão, é para se praticar todos os dias, e sobretudo numa lógica de não apenas "dar o peixe, mas de ensinar a pescar". Pois senão, que bondade e generosidade pode existir na prova da abundância por um dia, e na experiência da miséria e solidão nos restantes 364 dias do ano? Que fizemos de facto para mudar as coisas? Quanto do nosso tempo e saber oferecemos para que o Natal dos pobres e desprovidos possa melhorar de ano para ano?
Ahmad ibn Hanbal (m. 855) contava num dos seus hádices uma bonita história de Jesus que faz parte do evangelho de Mateus. Um homem pergunta a Jesus: "Mestre da bondade, ensina-me algo que saibas e que eu não saiba, que me beneficie a mim e que não te faça mal a ti. Ensina-me como posso ser um servo verdadeiramente devoto a Deus?" Jesus responde: "Isso é fácil. Deves realmente amar Deus no teu coração e trabalhar para O Servir, empenhando-te com todo o esforço, e ser misericordioso para com o povo da tua raça, assim como és misericordioso para contigo próprio". "Mas Mestre da Bondade, quem é o Povo da minha raça?". Jesus responde: "Todas os filhos de Adão. E tudo o que não desejas que te façam a ti, não o faças aos outros. Assim, serás verdadeiramente devoto a Deus".
No Alcorão, mensagens semelhantes a esta apelam ao amor a Deus através das boas obras para com a humanidade. Ao contrário do que vai sendo erradamente difundido, o pluralismo de fés é algo aceite dentro do islão como desejável e é justamente nessa pluralidade de crenças que se espera que possamos competir e excedermo-nos uns aos outros nas boas obras. Diz o Alcorão: "Para cada um apontámos uma lei divina e traçámos um caminho. Se Deus tivesse querido, ter-vos-ia feito uma só comunidade. Mas Ele quis antes testar-vos pelo que vos deu, e fez-vos naquilo que sois. Então, excedei-vos uns aos outros nas boas obras" (5: 48). Noutro lugar, o Alcorão diz: "Oh Humanidade! Nós vos criámos homens e mulheres e fizemo-vos em grupos e sociedades, para que pudessem conhecer-se uns aos outros. O mais nobre de entre vós é aquele que for melhor na conduta" (49;13). A palavra conduta é "Taqwa" e aparece umas 200 vezes no Alcorão. Ela refere-se a uma base moral que subjaz a acção humana e a consciência ética das responsabilidades perante Deus e a sociedade.
É Natal porque Jesus nasceu. Mas é porque Jesus nasceu que todos os dias são dias de fazer Natal, de nos excedermos nas boas obras, seja qual for o caminho de cada um.
Estudiosa de temas islâmicos
(Faranazk@sapo.pt)

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