Queremos uma RTP intocável como uma "vaca sagrada"? Ou apenas um bom serviço público?

Público 2012-08-31 José Manuel Fernandes
Não fazer nada e continuar apenas a "gerir bem" a RTP não é opção. Nos últimos dez anos isso custou 4 mil milhões de euros

Não há nada como os problemas baterem à nossa porta para mudarmos de opinião. Até há uma semana não havia jornalista que não fosse contra as "corporações" e não se manifestasse indignado com as "rendas". Desde que começou a ser discutido o futuro da RTP percebemos que, afinal, as corporações que os indignavam eram as outras e as rendas que os amofinam são aquelas de que não são beneficiários. E o pior é que muitos parecem estar a reagir como uma tribo, sem sequer pensar.

Comecemos pelo princípio, e pelo que é menos relevante, a questão de saber se devia ter sido ou não António Borges a apresentar o cenário de concessão do serviço público de televisão. Não tem discussão: foi um erro político e uma gaffe institucional. Assunto encerrado, gastar mais tempo com isto é ocuparmo-nos da espuma dos dias, não da substância dos problemas.

Continuemos pelo que é mais importante: o futuro da RTP. Há dez anos, quando também houve uma enorme vozearia que até meteu manifestações à porta do telejornal, a RTP era uma empresa falida, arruinada, mal gerida e com défices galopantes. Foi então reestruturada contra ventos e marés e a sua situação estabilizou. Mas o preço dessa estabilização foi elevado: nos últimos dez anos, de 2003 a 2012, a RTP custou aos portugueses, via taxa ou via impostos, 3,77 mil milhões de euros. Quase dois anos de subsídios de férias e Natal da função pública e dos pensionistas. Há quem ache isto um grande sucesso e diga que a empresa deu "lucros" nos últimos dois anos. Teria graça se não fosse trágico.

Isto é muito, mas mesmo muito dinheiro, sobretudo se pensarmos que entretanto a RTP deixou muito a desejar no que respeita à prestação de serviço público e perdeu quase metade da sua audiência. Não fazer nada e continuar apenas a "gerir bem" a RTP não é, para mim, opção. É o tipo de solução que só interessa aos interesses instalados na RTP e que se têm manifestado publicamente, de forma grotesca, nos telejornais das 20h, transformado na tribuna da "corporação RTP" e da defesa das rendas que esta cobra a todos os portugueses (só um exemplo da desproporção: este ano o Estado dará à RTP, para além da taxa e de dinheiro para as dívidas, 90 milhões de euros de indemnização compensatória, três vezes mais do que os 28 milhões de euros que receberá a CP).

A forma desonesta como o lobby da RTP tem procurado condicionar o actual debate é bem evidente no comportamento da administração, que surgiu a dizer que o seu PSEF - Plano de Sustentabilidade Económica e Financeira - permitia reduzir os custos para níveis nunca vistos, mas omitindo que esse plano também prevê o fim do segundo canal e a separação da RTP Madeira e RTP Açores. Com tanta poeira lançada para o ar é, de facto, muito difícil discutir seja o que for, ficamos nas mãos dos interesses instalados e dos seus argumentos.

Há muito que venho defendendo a necessidade de separar a discussão do que deve ser o serviço público de televisão do que deve ser o futuro da RTP. O lobby da RTP sempre quis confundir serviço público de televisão com empresa pública de radiodifusão, mesmo quando é evidente que boa parte das emissões da RTP (incluindo das suas antenas de rádio) se situam no mesmo patamar das emissões dos canais privados. Já se sabe que pouco distingue a RTP1 da SIC e da TVI, mas por que será que a RTP Informação é "serviço público" e a SIC Notícias não é? Ou que a Antena 1 é "serviço público" e a TSF não é? Apenas porque o lobby da RTP tratou de impor uma "ideologia de serviço público" - para utilizar a expressão de Eduardo Cintra Torres - que visa sobretudo defender as suas posições numa empresa pública que nos custa os olhos da cara.

Mais uma vez estamos a discutir a suposta sobrevivência da RTP - com tudo o que ela tem, do Preço Certo ao Malato e à Catarina Furtado, sem esquecer o seu passado ao serviço de governo atrás de governo - sem atender ao que deviam ser os limites da intervenção do Estado, isto é, apenas garantir o acesso ao que o mercado não assegura no seu livre funcionamento. O que eu gostava de discutir era se os nossos impostos e as nossas taxas devem suportar o que é pago às "estrelas" da RTP ou antes garantir que, por exemplo, havia mais produção de documentários, mais teatro na televisão ou mais cuidado com a língua portuguesa. O que eu queria discutir é se faz sentido uma empresa pública, inevitavelmente dependente do poder político, produzir informação, isto é, se pela mesma razão que não temos hoje jornais nacionalizados também não devíamos deixar de ter telejornais do Estado.

É que não faz sentido falar, no século XXI, em "serviço público" a não ser no quadro daquilo que o mercado não é capaz de oferecer. Não há razão para incluir no "serviço público", com os contribuintes a pagar, aquilo a que estes acedem livremente nos outros canais. Não é preciso vivermos em tempos de crise para pensar assim: basta respeitar o dinheiro dos contribuintes, venha ele dos impostos ou de uma taxa.

Boa parte da culpa de estarmos a discutir o que é lateral é do Governo e da forma como geriu este dossier. O resto da culpa é de todos os que não querem mudar nada, a começar infelizmente pela maioria dos jornalistas e a acabar em partidos que até já prometem renacionalizações.

Não sou capaz de discutir cenários que não conheço. Sobretudo o que me espanta é que tanta gente se tenha pronunciado, de forma tão definitiva, até com contas detalhadas e análises sobre "lucros garantidos", sobre hipóteses que nem sequer estão explicitadas. Mais uma vez penso que todos ganharíamos se o Governo expusesse com mais clareza os seus cenários e divulgasse os seus estudos. Ganharíamos mesmo sabendo que haverá sempre quem apenas defenda o status quo, pois o contribuinte paga e o espectador é manso.

O que posso discutir é outra coisa: quais os pontos de partida para a discussão.

O primeiro é que a RTP não pode continuar a ser vista como uma "vaca sagrada" criada para a eternidade. Independentemente do valor de muitos dos seus profissionais, e da evolução positiva dos últimos anos, há lá muitos vícios entranhados que, porventura, só se extirpariam extinguindo a empresa e criando uma nova ao lado. Quem está no sector, e até na RTP, sabe que é assim, mas ninguém o diz alto. Eu digo.

O segundo é que todos beneficiaríamos se o Estado estivesse menos presente neste sector, como todos beneficiámos quando o Estado reprivatizou jornais e rádios e permitiu o aparecimento de televisões privadas (na altura os mesmos que hoje prevêem um desastre anteviram um cataclismo). Tudo o que diminuir o espaço para interferências políticas é positivo, sobretudo num país com os maus hábitos de Portugal.

O terceiro é que a democracia exige pluralismo e transparência na propriedade dos órgãos de comunicação social, requer empresas sustentáveis e que não se movam por interesses obscuros, pelo que qualquer medida do Governo que modifique as condições de funcionamento do mercado tem de ter em consideração a fragilidade extrema do actual tecido empresarial e a opacidade associada a alguns apetites que por aí rondam.

Não fossem estes últimos factores e defenderia a privatização total de RTP, com subconcessão em concurso aberto a todos do serviço público. Como a situação actual exige, além de determinação, prudência, será em função do conjunto destes critérios que analisarei, quando realmente as conhecer, as propostas do Governo. Sem grandes esperanças ou ilusões, mas também sem qualquer interesse instalado ou renda, que não tive nem tenho.

P.S.: O ataque, insultuoso e sem fundamento, que Manuel Loff fez a Rui Ramos, talvez o mais talentoso historiador da sua geração, utilizando para isso as páginas do PÚBLICO, é um exemplo da forma como se tem vindo a degradar, em certos sectores, o debate público instrumentalizado politicamente. Voltarei ao tema.

Comentários

Gabriel Monchique disse…
Excelente artigo ! Um dos problemas da republica portuguesa ( e de Portugal,o que não e' a mesma coisa,pois a R.P. e' um regime ), 'e exactamente o da informação acessível ao comum dos mortais. Nos " media" 'e muito confusa e manipulada politicamente , e só quem tem tempo para ler todos os artigos de opinião e para ter conversas de café com amigos bem informados 'e que talvez consiga perceber o que se passa... Por isso a maioria limita os seus conhecimentos ao seu trabalho e ao futebol...
As páginas O Povo são por isso extremamente importantes !
Gabriel Monchique

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