Acerca do ócio cristão
Ivica Raguz
In Communio, 2011/3
23.08.12
In Communio, 2011/3
23.08.12
SNPC
Dignidade e perigos do trabalho
«... o homem, criado à imagem de Deus, recebeu o mandamento de dominar a terra com tudo o que ela contém e governar o mundo na justiça e na santidade e, reconhecendo Deus como Criador universal, orientar-se a si e ao universo para Ele; de maneira que, estando todas as coisas sujeitas ao homem, seja glorificado em toda a terra o nome de Deus.» (GS 34) Com estas palavras, a Constituição Pastoral do Concílio Vaticano II Gaudium et spes sublinhou a dignidade de toda a atividade humana, incluindo o trabalho. Segundo a Gaudium et spes, a dignidade do trabalho tem origem na ideia do homem enquanto imagem de Deus. Enquanto Deus "trabalha" e está ativo, enquanto Deus é Criador do mundo, também o homem, como sua imagem, só pode ser criador, ente ativo, trabalhador na sua atividade.
Em poucas palavras: o homem é trabalhador porque Deus se revelou como trabalhador. Isto pressupõe que o homem no trabalho, «submetendo a si a terra» e «subordinando toda a realidade», pode e deve encontrar alegria na operosidade porque Deus se revelou como trabalhador feliz: «E Deus viu que isto era bom.» Pode dizer-se que a alegria e a dignidade do trabalho derivam de duas realidades fundamentais que lhe são próprias e nas quais se manifesta o princípio do homem criado à imagem de Deus. Em alguns aspetos, a alegria do trabalho consiste na criatividade: o homem experimenta-se a si mesmo como ativo e poderoso ao contribuir para o desenvolvimento do mundo e ao atribuir-lhe a forma desejada. Por outro lado, o trabalho dá alegria ao homem, pois graças a ele exprime a sua liberdade e independência perante os outros. Além disso, trabalhando ganha o seu salário, o que lhe permite ser livre e independente. Pelo contrário, sem trabalho, o homem perde a sua dignidade, torna-se passivo, impotente diante do mundo e dependente.
Mas as primeiras páginas da Sagrada Escritura revelam uma outra vertente do trabalho, a sua ambiguidade: «E dela [a terra] só arrancarás alimento à custa de penoso trabalho todos os dias da tua vida. Produzir-te-á espinhos e abrolhos, e comerás a erva dos campos. Comerás o pão com o suor do teu rosto.» (Gn 3,17-19) O trabalho não dá ao homem apenas alegria, mas também «dor» e «suor». O trabalho é «dor» e «suor» porque, trabalhando, o homem constata em si uma falha. É ativo no trabalho, mas através da sua atividade laboral não pode construir-se totalmente, tem sempre de enfrentar uma margem de incompletude.
Todos nós já experimentámos esse sentimento de incompletude depois da conclusão de um trabalho bem sucedido. Um tal "vazio" revela a imperfeição relativa à interioridade humana: o facto de o trabalho não poder por si só satisfazer plenamente a alma de cada um. Assim, o homem que não conhece nenhuma outra realidade salvo a do trabalho, vive sempre na "dor", experimenta um sentimento de frustração. Está tenso e irrequieto, pois o "vazio" provocado por um trabalho acabado de cumprir estimula-o a preencher o tempo com outro trabalho, a dedicar-se a outra atividade. Esta a tipologia do homem trabalhador vivendo sem paz, perseguindo um ativismo que, segundo Josef Pieper, deriva do desespero. O «trabalhador absoluto» está desesperado porque se mede continuamente com a própria inadequação: sempre deficiente, ele vai de uma atividade desesperada para outra atividade desesperada.
Pieper sublinha ainda que o trabalho submete o homem a um sistema laboral que cria dependência, «o acorrenta ao processo de trabalho». O sistema de trabalho impõe necessariamente ao ser humano as suas próprias exigências e a produtividade própria. Pode acrescentar-se que um tal sistema gera desigualdade entre os homens. O trabalhador dá-se conta de que é diferente dos outros: não recebe o mesmo salário dos colegas, faz a experiência de a sua dignidade depender frequentemente da importância do seu trabalho, a partir do momento em que os outros o respeitam, ou não, conforme a sua situação. Muitos trabalhadores fizeram a experiência da sua insignificância por o seu trabalho não ter qualquer prestígio social.
Além disso, porque o trabalho é uma atividade que não tem valor por si, mas está ao serviço de uma outra coisa, quem se deixou absorver totalmente pelo trabalho vive sempre fora de si mesmo, não tem tempo para si próprio. Pode dizer-se que no processo laboral o homem se esquece a si mesmo, é alienado pelo trabalho. O filósofo Friedrich Nietzsche pôs claramente em evidência os riscos inerentes ao trabalho, que já referimos: «Na glorificação do “trabalho”, nos incansáveis discursos acerca da “bênção do trabalho”, vejo a mesma segunda intenção que se esconde nos elogios das ações impessoais de utilidade geral: o medo, a saber, de toda a realidade individual. No fundo, perante o trabalho - e com isto entende-se sempre aquela fatigante atividade que dura de manhã à noite -, sente-se hoje que o trabalho enquanto tal constitui a melhor polícia pois mantém cada um com rédea curta e consegue impedir vigorosamente o potenciar da razão, da cupidez, do desejo de independência. Ele consome de modo extraordinário uma grande quantidade de energia nervosa e subtrai-a à reflexão, à meditação, ao sonhar, ao preocupar-se, ao amar, ao odiar; coloca diante dos olhos um pequeno objetivo e obtém fáceis e regulares satisfações. Assim, uma sociedade em que continuamente se trabalha duramente, terá maior segurança: e hoje adora-se a segurança como a suprema divindade.»
O homem, totalmente prisioneiro do trabalho, está fatigado, encontra-se sempre no "sofrimento" do exaurir físico e psíquico. Devido a este exaurir, não só não consegue desenvolver uma atitude crítica no confronto consigo mesmo, com os outros ou com a sociedade, como também não pode dar espaço às relações pessoais em família, não pode amar, não tem tempo livre e já não tem força para cultivar amizades. Deste modo, o «trabalhador absoluto» torna-se uma engrenagem não pensante e insignificante na máquina do processo laboral.
Tempo livre na sociedade moderna
A nossa análise um pouco pessimista do trabalho na sociedade contemporânea levar-nos-ia a pensar que não existe nada mais para além do trabalho. E claro que o homem que trabalhasse sem cessar, não poderia em última análise trabalhar para nada. Por isso, o sistema laboral da nossa sociedade inventou «o tempo livre». Já não se fala de ócio, mas de tempo livre.
Que implica esta evolução lexical que, partindo do ócio, termina no tempo livre? Para Jürgen Habermas, «o tempo livre» é o tempo no qual se «consome a cultura». Ao invés, o ócio é o tempo que «cria a cultura». No tempo livre o indivíduo é instrumentalizado, subordinado ao consumo em que não há lugar à emancipação do homem. Habermas sublinha ainda que o tempo livre das sociedades modernas é completamente absorvido pelo processo laboral. Está apenas ao serviço do trabalho: como período necessário à regeneração de energias, como interrupção e compensação do trabalho.
Para melhor entender estas três dimensões do tempo livre, servir-nos-emos da definição de Aristóteles para o ócio: «Crê-se que a felicidade consista no ócio: de facto, trabalhamos para alcançar o ócio.» O tempo livre pode ser entendido como o ócio invertido. Privamo-nos do trabalho para sermos regenerados, i.e., para podermos restaurar novas forças para o trabalho. No que diz respeito à interrupção, o tempo livre suspende o trabalho quotidiano para que possamos dedicar-nos a outras ocupações que nos dão a ilusão de termos mais sucesso que no trabalho quotidiano. O tempo livre como compensação significa, ao contrário, que renunciamos ao trabalho para nos dedicarmos às atividades não-laborais. O tempo livre deveria preencher o vazio causado pelo trabalho e compensar o seu empenho com uma não-atividade.
Pode ver-se que a perceção atual do tempo livre não sai do círculo vicioso do processo laboral: o tempo livre define-se como um outro trabalho ou somente como não-atividade. Queremos deter-nos um pouco nesta segunda dimensão do tempo livre. Com frequência, este tempo livre como não-atividade torna-se um tempo triste, como diz o poeta croata Dobrisa Cesaric falando da experiência do domingo: «Domingo. Triste». Sim, o tempo livre torna-se triste porque quando não se trabalha não se sabe o que fazer consigo próprio e com os outros. Estamos de tal maneira habituados ao trabalho, que não sabemos que fazer quando não trabalhamos. Este tempo livre e triste assusta-nos porque é entediante, e queremos evitá-lo o mais efetivamente possível. Queremos, como se costuma dizer, «matar o tempo». O tempo «mata-se» com os vários «vícios» do corpo: a embriaguez de fim de semana, o «repouso» nos centros comerciais, as violências em família e nas estradas, o estar todo o dia diante da televisão ou ao computador, etc. Escutemos o que pensa sobre isso Cesaric: «Ao domingo quando o trabalho encerra/ então, a miséria bebe, bebe,/ alguém canta com voz rouca/ e alguém bate na mulher». Em resumo, pode ter-se a impressão de que o homem, embora pareça esperar ansiosamente o tempo livre, no fundo quer regressar ao trabalho, prefere o trabalho porque este tempo livre é triste. Neste sentido tornam-se significativas as palavras de Charles Baudelaire: «Devemos trabalhar, se não por gosto, ao menos por desespero. A verdade, portanto, é que o trabalho é menos enfadonho que o divertimento.»
© Allen Bradley/ImageZoo/Corbis
Após ter apresentado a questão do trabalho e do tempo livre na sociedade contemporânea, pretende-se agora esboçar uma pequena teologia do ócio. Como já vimos, o tempo livre, tal como se vive na sociedade atual, não liberta o homem do processo de trabalho mas arrasta-o ainda mais para o seu contexto. Disto estão também conscientes os pensadores que não aceitam a visão cristã e teológica do ócio. A propósito deste ócio para lá do tempo livre, já Nietzsche, quando descreve a necessidade de uma arquitetura íntima na qual possamos pensar e praticar a nossa liberdade, escreve: «Será necessário, num momento ou noutro, e provavelmente num futuro próximo, dar-se conta daquilo que falta sobretudo nas nossas grandes cidades: lugares tranquilos e amplos, de grande dimensão, para a meditação, lugares com longas galerias extremamente espaçosas para quando o tempo está mau ou há demasiado sol, nos quais não entre o alarido dos carros e dos vendedores ambulantes, e nos quais um mais fino respeito pelas conveniências proíbe também ao padre pregar em voz alta; construções e jardins públicos que exprimam no seu conjunto a sublimidade da meditação e do agir solitário.» De certa maneira, Nietzsche sugere-nos «uma arquitetura do ócio» na qual o homem pode meditar livre e tranquilamente.
O filósofo alemão está perfeitamente consciente da submissão do homem moderno à mentalidade do trabalho e, por consequência, do tempo livre despendido entre «ruídos» que corroem a faculdade de pensar. Também nós procuraremos definir o ócio para lá do trabalho e do tempo livre. O que não significa que o ócio não tenha qualquer importância e qualquer relação com o trabalho. Ao contrário, o ócio abre-nos a uma nova perspetiva e visão do trabalho, no seu conjunto relativizante e libertador. Por fim, tornar-nos-á capazes de trabalhar ainda mais.
O que é o ócio? Vimos que o trabalho tem diversas dimensões: a da atividade progressiva e a da liberdade como independência; depois, a da "dor" da tensão contínua e a da subordinação ao processo laboral. O ócio representa as outras dimensões da vida humana: liberdade como recetividade e dependência, alegria da plenitude, liturgia da liberdade do sistema laboral num espaço e num tempo bem definidos.
Liberdade como recetividade e dependência
No trabalho o homem progride continuamente, apropria-se do mundo, modela-o segundo a sua visão. Isto dá-lhe um forte sentimento de autonomia e de independência. Mas a vida humana não se esgota nesta atividade. Pode dizer-se que aquilo que produz sentido para o homem, que o completa - quer dizer, as relações pessoais de amor e de amizade - não se conquista, é antes oferecido e recebe-se. Neste sentido, o ócio é certamente uma atividade, mas uma atividade que requer passividade: não nos impomos ao outro, mas retiramo-nos perante o outro para receber e acolher. O homem aceita depender do outro, aprende com o outro e abre-se a ele: «O ócio não é uma atitude daquele que intervém, mas daquele que se abre; não daquele que se empenha em fazer mas daquele que deixa, que se deixa e abandona - quase como um adormecido que se abandona (só aquele que se abandona pode dormir).» Deste modo, realiza-se no ócio uma outra experiência de liberdade. Esta última não se revela na independência e no isolamento do outro, mas antes na dependência e na abertura ao outro. Seguindo Karl Rahner podemos dizer que se trata de «uma liberdade que recebe, disponibilidade que é disposta, responsabilidade que se confia, obra que sofre, expressão da impressão.»
No trabalho o homem progride continuamente, apropria-se do mundo, modela-o segundo a sua visão. Isto dá-lhe um forte sentimento de autonomia e de independência. Mas a vida humana não se esgota nesta atividade. Pode dizer-se que aquilo que produz sentido para o homem, que o completa - quer dizer, as relações pessoais de amor e de amizade - não se conquista, é antes oferecido e recebe-se. Neste sentido, o ócio é certamente uma atividade, mas uma atividade que requer passividade: não nos impomos ao outro, mas retiramo-nos perante o outro para receber e acolher. O homem aceita depender do outro, aprende com o outro e abre-se a ele: «O ócio não é uma atitude daquele que intervém, mas daquele que se abre; não daquele que se empenha em fazer mas daquele que deixa, que se deixa e abandona - quase como um adormecido que se abandona (só aquele que se abandona pode dormir).» Deste modo, realiza-se no ócio uma outra experiência de liberdade. Esta última não se revela na independência e no isolamento do outro, mas antes na dependência e na abertura ao outro. Seguindo Karl Rahner podemos dizer que se trata de «uma liberdade que recebe, disponibilidade que é disposta, responsabilidade que se confia, obra que sofre, expressão da impressão.»
Alegria da plenitude
No trabalho há sempre "dor" e "suor", porque as atividades laborais não têm sentido por si mesmas. O trabalho está, assim, profundamente penetrado pela lógica da utilidade: trabalha-se para ser útil, para se obter algo. Neste sentido, o homem que trabalha nunca mais para, sente-se insatisfeito, tenso e voltado para algo que quer alcançar. Ao invés, o ócio é uma atividade que tem sentido. No ócio experimenta-se e recebe-se a plenitude que transmite alegria ao ser humano no seu todo: à alma e ao corpo. A atividade humana fica suspensa diante desta plenitude: desfruta-a e regozija-se com ela. A tensão é menor em favor de um tranquilo abandono: já não se trata de ser útil, mas de se alegrar com a plenitude. O ócio não é meramente um não-trabalho, uma não-atividade de que se pode fazer a experiência no tempo livre. É importante notar a perturbação de quantos fizeram, pela primeira vez, a experiência do ócio: não sabem que fazer. Querem logo ser úteis, fazer algo, retribuir de imediato aquilo que outros lhes deram. Propõem-se corresponder logo à gratuidade do dom que receberam, pois sentem-se ameaçados pela dependência provocada por se terem tornado passíveis de gratuidade. Querem logo restabelecer uma hipotética "justiça" com o outro. Esta "imediatez" de reação confirma que estas pessoas ainda não começaram a viver o verdadeiro ócio, o ócio da recetividade e da alegria da plenitude, a graça de serem destinatários do dom, que não se deve retribuir "logo". Não se deve "logo" restabelecer a justiça com o outro, mas recebe-se a graça da dependência em relação ao outro, a graça que "lentamente" se frui. Por outro lado, o ócio não comporta o sentido de vazio inerente ao tempo livre, durante o qual se deve ter algo para "fazer", que se deve freneticamente preencher. O ócio é a plenitude que nos cumula de paz e tranquilidade.
No trabalho há sempre "dor" e "suor", porque as atividades laborais não têm sentido por si mesmas. O trabalho está, assim, profundamente penetrado pela lógica da utilidade: trabalha-se para ser útil, para se obter algo. Neste sentido, o homem que trabalha nunca mais para, sente-se insatisfeito, tenso e voltado para algo que quer alcançar. Ao invés, o ócio é uma atividade que tem sentido. No ócio experimenta-se e recebe-se a plenitude que transmite alegria ao ser humano no seu todo: à alma e ao corpo. A atividade humana fica suspensa diante desta plenitude: desfruta-a e regozija-se com ela. A tensão é menor em favor de um tranquilo abandono: já não se trata de ser útil, mas de se alegrar com a plenitude. O ócio não é meramente um não-trabalho, uma não-atividade de que se pode fazer a experiência no tempo livre. É importante notar a perturbação de quantos fizeram, pela primeira vez, a experiência do ócio: não sabem que fazer. Querem logo ser úteis, fazer algo, retribuir de imediato aquilo que outros lhes deram. Propõem-se corresponder logo à gratuidade do dom que receberam, pois sentem-se ameaçados pela dependência provocada por se terem tornado passíveis de gratuidade. Querem logo restabelecer uma hipotética "justiça" com o outro. Esta "imediatez" de reação confirma que estas pessoas ainda não começaram a viver o verdadeiro ócio, o ócio da recetividade e da alegria da plenitude, a graça de serem destinatários do dom, que não se deve retribuir "logo". Não se deve "logo" restabelecer a justiça com o outro, mas recebe-se a graça da dependência em relação ao outro, a graça que "lentamente" se frui. Por outro lado, o ócio não comporta o sentido de vazio inerente ao tempo livre, durante o qual se deve ter algo para "fazer", que se deve freneticamente preencher. O ócio é a plenitude que nos cumula de paz e tranquilidade.
Contudo, como podemos dispor-nos ao ócio na recetividade e na alegria da plenitude? Para começar, o ócio pode ser vivido compartilhando uma refeição. Convida-se alguém para comer de forma inteiramente gratuita, apenas para dar ao outro e ser passível de dom da parte do outro. Convidar e deixar-se convidar para um festim é uma operação aparentemente simples, mas o homem de hoje está, com frequência, privado de tal iniciativa. Já não se tem tempo (trabalha-se ininterruptamente!) para estarmos juntos, para comermos e bebermos juntos. No festim desenvolvem-se relações de amor e amizade. Fala-se com o outro, escutamo-lo. Partilham-se reciprocamente as alegrias e os êxitos, mas também as tristezas e as angústias do outro. Deste modo, o ócio do festim cria a comunhão corporal e espiritual. O ócio pode concretizar-se igualmente através de passeios pela natureza, pois aí não se faz nada, não se trabalha, mas acolhe-se a sua beleza, a sua tranquilidade e a sua força. Além disso, pode exercitar-se o ócio ainda lendo um bom livro que não nos é imediatamente "útil". E pratica-se também o ócio nas visitas aos outros, no fazer boas obras, para lá de qualquer interesse e utilidade.
Por fim, pode defender-se que o ócio nos dá uma outra visão de nós mesmos, do outro e do mundo, visão a que se poderá chamar "órfica", por oposição à atividade laboral que persegue de preferência um princípio prometeico. Orfeu canta Deus, a natureza, o outro. O seu canto não é interessado, não se compraz na vontade de poder e na procura do útil. Orfeu maravilha-se, agradece, rejubila e recebe através do seu canto a plenitude da realidade. Escreve Rilke sobre Orfeu: «O canto que tu mostras não é cobiça, não procura uma meta que seja alcançada ao final. Canto é existência.» Karl Rahner chama ao ócio o tempo das musas, «o tempo musical»: «O tempo musical é relaxamento, algo que não se projeta nem se produz, tornar-se disponível e confiar nas insuperáveis forças da existência, esperar o irromper de algo de incalculável e de oferecido, acolhimento da graça, o sentido sem objetivo.» (...)
Esta transcrição omite as notas de rodapé.
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