Em termos de pódio

Público, 2012-08-08
Carlos Fiolhais

No outro dia, ao guiar numa povoação para mim desconhecida, parei para perguntar a um polícia onde ficava a rua onde queria ir. O guarda informou-me: "Siga em frente até à próxima rotunda e aí, em termos de direita, é a última." Estava longe de ser a primeira vez que ouvia a expressão "em termos de", um inglesismo hoje usado a torto e a direito. Mas estranhei tanto que decidi ficar atento a frases do género, ditas por pessoas da rua ou notáveis de qualquer espécie. E foi assim que ouvi há poucos dias Vítor Pereira, treinador do Futebol Clube do Porto, depois do jogo inaugural desta época com o Lyon, afirmar: "Estamos a crescer em termos de jogo."

Mas tanto a frase do polícia como a do treinador não conseguem bater uma outra com um duplo "em termos de" do comandante José Vicente Moura, eterno presidente do Comité Olímpico Português. Declarou ele, a 14 de Julho passado, em registo da Lusa, "à margem da" (é o que diz o despacho) cerimónia de homenagem a Francisco Lázaro, o atleta português que faleceu há cem anos, na maratona de Estocolmo de 1912, durante a primeira participação olímpica portuguesa:

"As minhas previsões não são muito optimistas em termos de pódio, mas não em termos de final. Às vezes, as coisas acontecem. Há quatro anos enganei-me e espero que me volte a enganar novamente em Londres."

Todos estão lembrados da auto-referência. Nos Jogos Olímpicos de Pequim, o presidente tinha prometido uma mão-cheia de medalhas para a representação nacional. Após a desqualificação de Naide Gomes, e muito descoroçoado por não cumprir o prometido, afirmou que não se voltaria a candidatar ao lugar. Mas depressa deu o dito por não dito, passando a ser candidato, quando Nelson Évora ganhou uma medalha de ouro no triplo salto. E lá continuou em funções. Às vezes as coisas acontecem e, dessa vez, uma coisa tinha acontecido "em termos de medalhas". Já nos Jogos Olímpicos de Londres, as coisas não têm, pura e simplesmente, acontecido. O presidente bem gostava de se ter enganado, mas até agora não se enganou. Para compensar a falta de lugares no pódio, ainda espera que alguma coisa aconteça "em termos de" final. No final, talvez se volte a candidatar, não se sabe.

Com o país adormecido pelo calor estival e indolente pela continuação da crise, quase ninguém reagiu. Só Francis Obikwelu, medalha de prata nos 100 metros em Atenas, não teve pejo em criticar o primarismo das declarações de Vicente Moura: "Um presidente não pode dizer isso. É necessário dar confiança aos atletas que estão nos Jogos." Um comandante assim desautorizado não tem aptidões para ir ao leme. O navio vai, como não podia deixar de ir, à deriva. Cada atleta entregue a si próprio, cada um esforçando-se certamente por corresponder às expectativas pessoais e alheias. Mas estas últimas eram bastante baixas, eram quase só a de marcar presença. Um sintoma da falta de liderança foi o abandono indisciplinado de uma atleta da prancha a vela. Houvesse um comandante atento no seu posto desde a partida e ela nem sequer teria embarcado.

Já que o responsável pelo Comité Olímpico Português é oficial da Marinha reformado (o título de comandante vem daí), não será desadequada uma comparação naval. Imagine-se o que seria se o comandante do Costa Concordia afirmasse na iminência do naufrágio:

"As minhas previsões não são muito optimistas em termos de salvamento do navio, mas não em termos do meu salvamento. Às vezes as coisas acontecem. Já me enganei várias vezes e espero agora enganar-me novamente."

Com o comandante mentalmente ausente da nossa representação olímpica, o imediato revela-se também incapaz de liderar. Mário Campos, responsável pela missão portuguesa e presidente da Federação de Canoagem, perante o desastre dos resultados, não diz "em termos de", mas atribuiu a culpa ao povo português: "Sinto mágoa de muitas das pessoas em Portugal não terem a cultura desportiva suficiente para valorizar muitos dos resultados que foram aqui obtidos (...). Infelizmente tenho a noção da pouca cultura desportiva que o nosso país tem." Pode até ser que tenha razão a respeito da falta de cultura desportiva em Portugal, reflexo aliás da falta de exigência para connosco próprios em quase tudo, mas ele não está ali na qualidade de comentador. Ficar-lhe-ia bem dizer isso num canal televisivo, mas não na cadeira de chefe de missão, onde a última coisa que deve fazer é criticar os espectadores. Claro que queríamos melhor. Que mal há em ser exigente e querer ver atletas lusos no pódio?

Nos Jogos de 1912, um carpinteiro que treinava a correr nas ruas de Lisboa atrás dos eléctricos morreu em prova sem qualquer apoio. Hoje, num tempo em que os apoios são desmesuradamente maiores, honrar a sua memória será, no mínimo, não dizer disparates.

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