A dignidade da política
Adriano Moreira
Presidente da Academia das Ciências de Lisboa, Prémio Árvore da Vida-Padre Manuel Antunes 2009
In Communio, 2012/1
SNPC 27.08.12
Presidente da Academia das Ciências de Lisboa, Prémio Árvore da Vida-Padre Manuel Antunes 2009
In Communio, 2012/1
SNPC 27.08.12
O tema da dignidade na política, tal como acontece em relação a todas as intervenções na vida social, tem em primeiro lugar relação com a definição do fenómeno identificador da política, e depois com a escala de valores que é variável, não apenas ao longo dos tempos, mas também na área cultural que estiver em exame.
Quanto à primeira referência, a do fenómeno identificador, talvez possa admitir-se que é o que mais interliga todas as concepções, passadas ou vigentes: trata-se da conquista, conservação, e exercício do poder de governar a comunidade.
A conquista pelo exercício da violência e força militar, quer em processo de expansão no sentido de submeter territórios e povos, quer no sentido de submeter a comunidade originária, tem essa referência identificadora, que celebrizou a obra de Maquiavel, o qual se limitou mais a descrever o processo do que a doutrinar sobre condicionamentos éticos dos agentes. Deste modo, o maquiavelismo ficou como uma corrente, de narrativa histórica volumosa, abrangente de procedimentos já não necessariamente militares e violentos, mas do exercício de enganos públicos e privados, de quebras de lealdades, em suma, de falta de autenticidade, isto é, de coerência entre o discurso e a ação.
O século XX teve e sofreu exemplos devastadores desta atitude, que tem o êxito como valor, e o desastre ético como resultado final: o nazismo e o sovietismo foram molduras de conceitos estratégicos exercidos por homens que cultivaram minuciosamente o maquiavelismo.
Foram essas tragédias, marcadas pelas guerras chamadas mundiais, mas de facto ocidentais, de 1914-1918 e 1939-1945, que fizeram regressar a importância do condicionamento do poder político, na conquista, no exercício, e na defesa, pela ética, e a tentar condicionar o processo da globalização pela ética internacional. Não se trata apenas de exprimir essa exigência em normativismos jurídicos, como são a Carta da ONU e a sua Declaração de Direitos Humanos. O encontro de todas as áreas culturais em liberdade, que levou Kofi Annan a procurar, desde 2001, instituir o diálogo entre elas, tornou evidente a necessidade de formular uma Ética global, a que se dedica a Global Ethic Foundation, actualmente presidida pelo notável Hans Kung. Este, tendo sobretudo em vista a questão do Islão, vai propondo soluções pragmáticas, de modo a passar da imagem hostil à imagem da esperança, tema de que se ocupou o Parlamento Mundial das Religiões, reunido em 1999 na cidade do Cabo.
O confronto das duas percepções, a maquiavélica e a ética, tem imediato reflexo no conceito normativo da dignidade na política. Exemplos contemporâneos são, designadamente, Mandela e Václav Havel, o primeiro com o significado especial da trajectória entre a violência revolucionária e a santidade laica. E pondo em evidência que a dignidade na política implica a total devoção ao bem comum da comunidade, agora a tender para mundial, a autenticidade traduzida na coerência entre o discurso e a ação, a coragem de manter o eixo da roda, que são os valores, perante a adversidade, como fizeram líderes da guerra de 1939-1945, com destaque para Churchill e Roosevelt.
O relativismo que atingiu severamente o ocidente, que colocou o credo do mercado no lugar do credo do civismo, o preço das coisas no lugar do valor das coisas, os valores instrumentais acima dos valores fundamentais, multiplicou os casos de fortalecimento da corrente maquiavélica, feriu severamente a relação de confiança entre governantes e governados, levou os povos a tratar os responsáveis políticos na terceira pessoa (eles), e afastou os melhores do exercício da política. O regresso à autenticidade como atitude dominante é, para além dos inevitáveis erros e fracassos, a mais urgente necessidade de restaurar a dignidade na política, e a relação de confiança entre povos e governantes.
Quando João Paulo II proclamou Thomas Morus santo patrono de parlamentares e governantes, não ignorou que fora Chanceler da Inglaterra, assim como, ao elevar aos altares D. Nuno Alvares Pereira, não esqueceu que foi condestável do Reino de Portugal, e exerceu o poder militar contra os inimigos da independência do reino.
Tratou-se, como escreveu Francesco Cossica a respeito do primeiro, de reconhecer os valores que serviram de cânone a toda uma vida, e, naquele caso, dando testemunho com a perda da vida.
Esse cânone foi chamado virtude por Cícero e por Aristóteles, uma moral que se manifesta na política com a flexibilidade exigida pelos interesses a servir.
Isto significa, no conceito, que, tal como é evidente na esfera militar, é compatível com danos infligidos às pessoas (não só materiais), porque também o homem virtuoso é condicionado pelas circunstâncias.
Muitos entenderam que o melhor discurso sobre a virtude se deve a Aristóteles, o qual, entre mais detalhes, a considera como a disposição de obedecer à razão contra quaisquer oposições, definir os objetivos da ação e não apenas os meios de agir, dando como exemplo a coragem prudente, que não evita o risco por ceder às tentações de evitar o dever, tomando a honra como motivo sejam quais forem as circunstâncias.
A evolução ocidental para a democracia procurou definir juridicamente, nas Constituições, os normativos que, observados, garantem a dignidade da política. Todavia, a mundialização do objetivo de tornar o modelo democrático imperativo, rapidamente demonstrou que antes das normas jurídicas está uma conceção do mundo e da vida que orienta as definições codificadas, que tais paradigmas são variáveis com as áreas culturais, e por isso os compromissos entre os valores e os interesses são condicionados não apenas pela prudência, mas frequentemente pelos interesses. No mundo ocidental a distinção entre moral de convicção e moral de responsabilidade, em que Weber insistiu, tem expressão visível no normativismo das relações internacionais, cada vez mais influenciadas pela libertação do colonialismo que dominou várias áreas culturais. É assim que o direito humanitário parece um compromisso entre os Direitos Humanos (essenciais) e os limites supostos pelo conceito de guerra justa, o que teve uma expressão histórica, primeiro no Tribunal de Nuremberg que rejeitou a justificação da obediência, e, depois, pela instituição do Tribunal Penal Internacional, este a contribuir para as indagações sobre um possível paradigma mundial (Kung) que se imponha às diversidades.
Por isso, a busca de uma nova diplomacia global, destinada a conciliar o mundo, o que procura são padrões comuns de dignidade na política, fiando da autenticidade, isto é, da concordância entre o discurso e a prática, a paz para os nossos dias.
Tal como já escrevi (DN, 3-1-12), provavelmente é ainda necessário, e duradoira apersistência, que os intervenientes mais notados do processo atualizem a relação entre as convicções históricas que lhes moldaram a identidade e a realidade que mudou em termos de ser a outra coisa que não estava prevista nos seus planos por vezes seculares.
É a isto que Blancheri chama "a necessidade de conciliar o mundo", já nem sequer bipolar estrategicamente, mais bipolar do ponto de vista da balança económica e financeira, mas de qualquer modo a exigir redefinir a conciliação entre a política de imagem e a política consistente, entre a reserva de soberania e a interdependência, entre um paradigma ético global e um pragmatismo de conciliação. Realmente colocar o diálogo diplomático construtivo e criador no lugar da competição de interesses contraditórios e inconciliáveis, que dominaram a história não apenas europeia, mas mundial.
O processo europeu cedo levou a avaliar as exigências da querida unidade, não só de mercado, mas política, na área diplomática, ficando célebre o depoimento de fim de carreira do diplomata italiano Roberto Ducci, o qual terminava com um - Good bye to all that, ao imaginar que a cooperação dentro da comunidade europeia implicaria uma reformulação total da relação da nova estrutura dessa unidade com o mundo.
O fecho de consulados e embaixadas, que também praticamos, tem menos que ver com esta prevista evolução do que com a ideologia de orçamento e contenção, imposta pelo desastre financeiro e económico global. Mas em qualquer caso, uma estrutura específica para realidades específicas de cada membro da União, articulável com a unidade desta, exige engenho e arte que a preserve e torne eficaz, porque se trata das janelas de liberdade a que nenhum país vai renunciar.
Um mundo ideal não é necessariamente um mundo simplificado, em que valores e interesses se agregam num só resumo participado por todas as comunidades ao redor da terra. Conciliar o mundo não é uniformizar o mundo.
Comentários