O valor dos braços dos voluntários
Família Cristã, Terça-Feira, 13 Dezembro 2011
Sílvia Júlio/Família Cristã
No mês em que se celebra a vida de um modo especial, a FAMÍLIA CRISTÃ foi conhecer o trabalho dos voluntários na Ajuda de Berço. Aqueles que dão o miminho e o colinho aos meninos e às meninas que não têm o aconchego diário da mãe e do pai.Sílvia Júlio/Família Cristã
Estamos na sala de visitas, onde as famílias se podem encontrar com as crianças, que, por alguma razão, foram acolhidas pela Ajuda de Berço. Ali mesmo ao lado está uma sala onde alguém trabalha e pode também monitorizar o que se passa naquele espaço. A protecção daquelas crianças, que já sofreram outros abandonos, é fundamental para um crescimento o mais normal possível.
Tenta-se, em alguns casos, que os laços com as famílias não se desfaçam – e que até se fortaleçam, para que, assim que for possível, regressem às origens. Embora nem sempre isso seja possível – e há casos dramáticos em que as crianças são retiradas definitivamente aos pais.
À Ajuda de Berço chegam crianças recém-nascidas (que vêm directamente da maternidade) ou outras mais crescidas (no máximo até aos três anos). São meninos e meninas que não podem estar com as famílias – alguns deles serão adoptados ou institucionalizados. «Por motivos vários, são crianças que foram tiradas à sua família. A família não estava em condições de as ajudar a crescer», explica Isabel Menezes, coordenadora do voluntariado.
Enquanto permanecem na Ajuda de Berço, aquelas crianças precisam de colo e mimo. A instituição até poderia funcionar apenas com os funcionários, mesmo sem voluntários – mas não «funcionaria como desejaríamos», sublinha Isabel Menezes, que acrescenta «que não tinha o mesmo valor, a mais-valia das pessoas que vêm de coração dar aquele tempo e e carinho extra».
Trabalhar de coração
«Estas crianças têm mais carências afectivas do que as que estão com as suas famílias. O objectivo é tentar colmatar ao máximo essa carência. Os voluntários que nos ajudam a tomar conta das crianças são essenciais. Aqueles que estão só com as crianças são trinta e muitos em cada casa [a Ajuda de Berço tem duas casas]. O grosso do voluntariado são as pessoas que estão cá para nos ajudarem a tomar conta das crianças, os braços que nós precisamos para levar a cabo esta tarefa de tratar delas: dar-lhes comer, brincar...», conta aquela responsável.
Mas há muitas formas de se fazer voluntariado. «Há os voluntários que desempenham outro tipo de tarefas e não estão com as crianças. Temos pessoas que vêm esporadicamente para fazer tarefas de armazenamento, que ajudam na banca de vendas para a angariação de fundos...», explica Isabel Menezes.
Voluntariado sem crise
O perfil dos voluntários da Ajuda de Berço é heterogéneo. Há pessoas reformadas com tempo livre que querem continuar a ser úteis, outras que estão desempregadas, ocupando o corpo, a mente e o coração naquele lugar, e outras ainda que trabalham a tempo inteiro e arranjam tempo ao fim do dia para fazer voluntariado. A idade mínima para se ser voluntário na Ajuda de Berço é de 18 anos.
Nesta instituição, o voluntariado não está em crise. «Há uma predisposição das pessoas cada vez maior para se oferecerem para este tipo de voluntariado», constata.
Para se ser voluntário não é necessária formação especial: «Partimos do princípio de que as pessoas que se oferecem têm um gosto especial para estar com crianças e disponibilizam algum do seu tempo. Não precisam de ser educadoras nem mães, até porque também temos homens», diz.
O que mais comove esta responsável é «perceber que as pessoas que trabalham a tempo inteiro são as que, por vezes, têm mais tempo, são as mais fiáveis e assíduas. Quanto mais se faz, mais se consegue fazer ainda». Enternece-a também aquele casal novo de voluntários que ao sábado, depois de uma semana de trabalho, dedica a manhã às crianças da Ajuda de Berço. Aquele homem e aquela mulher ainda não são pais – e fazem questão de ter no projecto das suas vidas o voluntariado.
Rigor na selecção dos candidatos
Há coisas que os voluntários da Ajuda de Berço não podem nem devem fazer: «Quem vem para ajudar não pode andar a perguntar porque é que o menino X e o Y estão aqui, se é por ter sido abusado ou maltratado. A vida privada das crianças é sigilosa, do foro íntimo e do Segredo de Justiça. O voluntário não precisa de saber isso para levar a cabo a sua tarefa e não convém que ande a perguntar porque incomoda os funcionários que não podem responder. O voluntário não pode também tirar fotografias nem filmar estas crianças», informa.
Como já houve experiências negativas, existe agora um maior rigor na selecção dos candidatos a voluntários. São feitas duas entrevistas com duas pessoas. «Há quem, em vez de nos ajudar, acabe por criar problemas, não perceber que não pode impor as suas vontades e ideias, achando que as pessoas que estão aqui a trabalhar não sabem nada de nada.»
A Ajuda de Berço tem duas casas: um apartamento na Quinta do Cabrinha, em Lisboa, onde se encontram as crianças mais pequenas. As mais velhas estão em Monsanto numa casa mais espaçosa onde podem brincar à vontade num pátio. O ideal seria que permanecessem ali até aos três anos. Mas, neste momento, contra o que é costume e desejável, há duas crianças que frequentam o primeiro ciclo.
Na casa de Monsanto estão 18 crianças. O voluntariado funciona todos os dias entre as oito da manhã e as oito da noite. É pedido a cada voluntário que tenha uma disponibilidade mínima fixa de três horas semanais. «Convém que a pessoa siga o turno com fidelidade e assiduidade, por uma questão de organização da casa. Precisamos de saber com quem podemos contar para haver segurança afectiva das crianças. É importante que elas percebem que aquela pessoa vem naquele horário, porque já estão habituadas. Se a pessoa falta, as mais velhas apercebem-se. "Então, hoje não vem a ...?", perguntam. São crianças que já têm algumas inseguranças – e a falha dos voluntários vai aumentar esse tipo de insegurança. A criança não pode estar constantemente a conhecer adultos diferentes.»
«Estas crianças», continua, «já têm uma quantidade de turnos de funcionários por semana e mais uns quantos voluntários. Se entretanto introduzirmos mais mudanças, não estamos a ajudá-las nem a dar-lhes segurança afectiva.»
Uns braços que aconchegam
Ana Benazra, 55 anos, é voluntária há três. O seu sonho, que não chegou a ser concretizado, era ter um infantário. Como não se proporcionou a ocasião, descobriu outra janela de oportunidades: ser voluntária na Ajuda de Berço para dar «amor e colinho às crianças».
Sempre que um menino consegue o colo da Ana é visível e até comovente observar a forma segura como a criança se ergue nos seus braços. Há meninos que ficam ao colo de pé, como se se sentissem vitoriosos por minutos de atenção, outros enroscam-se no seu peito.
O que é frequente acontecer, para que todos sintam calor humano por igual, é haver três ou quatro crianças sentadas ao colo de uma voluntária ou funcionária. São imagens que ficam presas na retina e no coração. O desconforto dos meninos que estão mais atrás, até porque devem sentir-se apertados com o peso de quem está mais à frente, é completamente ignorado, porque o que ali conta é o colo. Não importa que esse colo seja partilhado. Só importa que haja uns braços que os envolvam e os aconchegam.
Ana confessa que se sente realizada quando está em contacto com as crianças no turno da manhã uma a duas vezes por semana. O olhar ganha um novo brilho quando elas correm para o seu colo. O sorriso de uma criança fá-la sentir-se feliz. O choro entristece-a. Porque pode ser sinónimo de dor – e a dor fá-la sentir-se impotente. Nessas alturas, deixa-se guiar pelo coração e reforça a "medicação" para a criança: muitos miminhos.
A revolta que diz sentir é a de não entender por que razão as crianças não podem estar junto das suas famílias, «mas ainda bem que, felizmente, há instituições para as acolher».
Sair com a «alma leve»
Graça Bessa, 62 anos, está reformada há seis anos, e é voluntária há dois meses. Escolheu desempenhar a sua missão de voluntária de outra maneira, sem contacto com as crianças, até por uma questão de saúde. Às terças e quintas de tarde organiza a base de dados da instituição. «Prefiro a parte administrativa, com as crianças canso-me imenso», conta.
Esta voluntária sexagenária diz-se disponível para fazer o que for necessário e, sempre que é preciso, fica dias inteiros a trabalhar na base de dados. E sai dali com a «alma leve» por ter contribuído com o seu trabalho para um bem maior.
Nos dias em que não faz voluntariado na Ajuda de Berço, dedica-se à família, em especial aos netos. Mas outras coisas podem ser realizadas fora do âmbito do voluntariado organizado, como «visitar um vizinho que é velhinho, há sempre coisas que se podem fazer, porque há uma obrigação social de ajudar os outros», conclui.
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