Endividamento e declínio demográfico
Público 2011-12-19 João Carlos Espada
O estatismo é um poderoso factor adicional de uma cultura de dependência e desperdício, de gratificação imediata
A época natalícia deveria poder trazer algum bom senso e alguma serenidade aos debates sobre o euro. Os líderes franceses precisam sobretudo de alguma serenidade, depois dos ataques públicos do primeiro-ministro, ministro das Finanças e governador do Banco de França ao estado da economia britânica.
Talvez o espírito do Natal cristão pudesse apaziguar o nacionalismo gaulês e inspirar uma reflexão mais alargada sobre o estado das nossas sociedades ocidentais. Em vez de uma guerrilha de palavras contra o endividamento da economia britânica, talvez pudéssemos reflectir sobre as origens do endividamento de todas as nossas economias ocidentais, e não só europeias.
Nesta perspectiva mais alargada, o endividamento ocidental sugere a existência de problemas culturais mais fundos do que as políticas deste ou daquele Governo, desta ou daquela moeda. E remete incontornavelmente para outra variável ainda mais preocupante: o declínio demográfico europeu.
Endividamento e declínio demográfico sugerem a existência de uma sociedade cansada, envelhecida, sem ambição de longo prazo, sem horizonte de aspirações para além da geração presente. A redução dos horizontes geracionais é um incentivo poderoso à lógica da gratificação imediata, em contraste com a gratificação diferida.
A gratificação diferida - que esteve na base da civilização europeia - gera poupança e investimento. O horizonte da poupança e do investimento foi sempre intergeracional: a motivação de cada geração começa na melhoria da sua própria condição, como observou Adam Smith, mas estende-se às gerações vindouras. A família heterossexual monogâmica emerge espontaneamente - e não como produto de desígnio político - como sede da racionalidade da poupança e do investimento, como sede de solidariedade espontânea entre gerações.
Sem família, sem geração seguinte na qual projectar o esforço voluntário de poupança e investimento, o horizonte dos indivíduos reduz-se à gratificação imediata. A poupança cede gradualmente lugar ao consumo, o investimento é substituído pelo endividamento. A gratificação imediata é distintiva da chamada multidão solitária.
Este é sem dúvida um ingrediente cultural incontornável da crise de endividamento ocidental. Ele alimenta, e é alimentado por um outro ingrediente crucial, de natureza política, mas também cultural: o crescimento do Estado e da despesa pública, talvez o facto político mais saliente do século XX europeu.
O estatismo é um poderoso factor adicional de uma cultura de dependência e desperdício, de gratificação imediata. Desprovido dos incentivos da propriedade privada, bem como da informação fornecida pelas escolhas dos consumidores em regime de concorrência, o estatismo é, literalmente, um buraco sem fundo. Basicamente, ele gera despesa e endividamento. Por outras palavras, o estatismo é um poderoso multiplicador da lógica da gratificação imediata.
Num ambiente cultural ambicioso e empreendedor, seria de esperar uma espécie de indignação espontânea contra o despesismo estatal, contra os elevados níveis de impostos e de despesa pública, contra a centralização das decisões políticas, sobretudo contra transferências adicionais dos centros de decisão política para entidades distantes e não controláveis pelos contribuintes.
Tudo isto seria de esperar numa sociedade jovem e com horizonte intergeracional. Mas, numa sociedade envelhecida e cansada, a escassa esperança que resta tende a ser depositada em salvadores. Que algum poder central nos salve, das nossas dívidas, do nosso cansaço, do nosso aborrecimento.
Não é esse, todavia, o espírito do Natal cristão que nesta época celebramos. Possa ele ajudar-nos a redescobrir o valor da pessoa e da sua consciência, da sua liberdade e da sua inesgotável criatividade espontânea, dos seus horizontes intergeracionais. Bom Natal.
Professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa; titular da cátedra European Parliament/Bronislaw Geremek in European Civilization no Colégio da Europa, Campus de Natolin, Varsóvia
Talvez o espírito do Natal cristão pudesse apaziguar o nacionalismo gaulês e inspirar uma reflexão mais alargada sobre o estado das nossas sociedades ocidentais. Em vez de uma guerrilha de palavras contra o endividamento da economia britânica, talvez pudéssemos reflectir sobre as origens do endividamento de todas as nossas economias ocidentais, e não só europeias.
Nesta perspectiva mais alargada, o endividamento ocidental sugere a existência de problemas culturais mais fundos do que as políticas deste ou daquele Governo, desta ou daquela moeda. E remete incontornavelmente para outra variável ainda mais preocupante: o declínio demográfico europeu.
Endividamento e declínio demográfico sugerem a existência de uma sociedade cansada, envelhecida, sem ambição de longo prazo, sem horizonte de aspirações para além da geração presente. A redução dos horizontes geracionais é um incentivo poderoso à lógica da gratificação imediata, em contraste com a gratificação diferida.
A gratificação diferida - que esteve na base da civilização europeia - gera poupança e investimento. O horizonte da poupança e do investimento foi sempre intergeracional: a motivação de cada geração começa na melhoria da sua própria condição, como observou Adam Smith, mas estende-se às gerações vindouras. A família heterossexual monogâmica emerge espontaneamente - e não como produto de desígnio político - como sede da racionalidade da poupança e do investimento, como sede de solidariedade espontânea entre gerações.
Sem família, sem geração seguinte na qual projectar o esforço voluntário de poupança e investimento, o horizonte dos indivíduos reduz-se à gratificação imediata. A poupança cede gradualmente lugar ao consumo, o investimento é substituído pelo endividamento. A gratificação imediata é distintiva da chamada multidão solitária.
Este é sem dúvida um ingrediente cultural incontornável da crise de endividamento ocidental. Ele alimenta, e é alimentado por um outro ingrediente crucial, de natureza política, mas também cultural: o crescimento do Estado e da despesa pública, talvez o facto político mais saliente do século XX europeu.
O estatismo é um poderoso factor adicional de uma cultura de dependência e desperdício, de gratificação imediata. Desprovido dos incentivos da propriedade privada, bem como da informação fornecida pelas escolhas dos consumidores em regime de concorrência, o estatismo é, literalmente, um buraco sem fundo. Basicamente, ele gera despesa e endividamento. Por outras palavras, o estatismo é um poderoso multiplicador da lógica da gratificação imediata.
Num ambiente cultural ambicioso e empreendedor, seria de esperar uma espécie de indignação espontânea contra o despesismo estatal, contra os elevados níveis de impostos e de despesa pública, contra a centralização das decisões políticas, sobretudo contra transferências adicionais dos centros de decisão política para entidades distantes e não controláveis pelos contribuintes.
Tudo isto seria de esperar numa sociedade jovem e com horizonte intergeracional. Mas, numa sociedade envelhecida e cansada, a escassa esperança que resta tende a ser depositada em salvadores. Que algum poder central nos salve, das nossas dívidas, do nosso cansaço, do nosso aborrecimento.
Não é esse, todavia, o espírito do Natal cristão que nesta época celebramos. Possa ele ajudar-nos a redescobrir o valor da pessoa e da sua consciência, da sua liberdade e da sua inesgotável criatividade espontânea, dos seus horizontes intergeracionais. Bom Natal.
Professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa; titular da cátedra European Parliament/Bronislaw Geremek in European Civilization no Colégio da Europa, Campus de Natolin, Varsóvia
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