Elogio aos gagos

João Pereira Coutinho 2011-02-21 Folha.com http://www.folha.uol.com.br/
Certo dia fiz uma viagem de trem entre Porto e Lisboa com Marc Shell. O ilustre Marc Shell é um escritor americano, professor em Harvard, e a conversa, durante três horas, é daquelas que dificilmente se esquecem. Falou-se de tudo: da vida e da morte. E de literatura, que faz a soma de ambas.
Um traço do cavalheiro, porém, causava-me estranheza: a forma como falava. As frases eram curtas. Pausadas. Como se houvesse ali um excesso de afetação ou vaidade.
Dias depois, ao folhear a revista "Spectator", encontrei a chave para o mistério: uma resenha ao último livro de Shell. O livro intitula-se "Stutter" e é uma mistura sagaz de autobiografia e estudo cultural sobre os dramas da gaguez.
Shell era gago. E a forma como falava, longe de ser uma exibição de pedantismo, era um mecanismo de sobrevivência. Cada. Frase. Era dita de um fôlego só. Para não haver derrapagens. Desconfortáveis.
Fiquei a pensar na conversa; a reavivá-la na memória; e apesar de nunca ter gaguejado, pelo menos oralmente (os meus detratores dirão que só gaguejo por escrito), imagino o que deve ser a vida de um gago. Cada frase é uma pequena ilha; e, entre as ilhas, um oceano imenso que é preciso cruzar sem afogamentos.
Lembrei-me de Shell e das suas ilhas quando assistia ao discurso do "Discurso do Rei": falo da alocução final e radiofônica em que George 6º, recriado com competência por Colin Firth, precisa de se dirigir à nação no momento em que a Inglaterra declarara guerra à Alemanha nazista. E, nas folhas do discurso, pequenos traços a marcar o ritmo da sinfonia. Como um compasso.
Então George 6º/Colin Firth começa. Uma frase. Outra. Mais outra. E, no rosto dele, um esforço homérico. Como se discursar fosse uma maratona olímpica de desfecho incerto.
E talvez fosse. Em 1939, já não bastava a um rei não cair do cavalo, como lhe diz o pai, George 5º (o notável Michael Gambon). Era preciso que a voz de um rei fosse escutada pelo seu povo, sobretudo quando, do outro lado do Canal da Mancha, os totalitarismos que ensombravam a Europa também eram totalitarismos de agressividade verbal.
Mussolini ou Hitler discursavam com a cadência de metralhadoras. Era preciso responder a tamanhas baterias orais com, pelo menos, alguns disparos de canhão. Mas como, se o rei era gago? Mas como, se o premiê também?
Churchill tratou do assunto com a cadência teatral que o imortalizou - embora, como explica Christopher Hitchens em ensaio sobre o velho Winston, nem sempre a voz de Churchill era a voz de Churchill. Por vezes, era o ator Norman Shelley quem gravava as intervenções radiofônicas em seu nome, mimetizando a voz na perfeição.
E, em relação ao rei, a angústia foi aliviada com um terapeuta. Que o ensinou a pular de ilha em ilha sem cair no mar.
"O Discurso do Rei" não é um grande filme. Mas é, sobretudo, um filme exemplar sobre a mais rara das virtudes: a virtude da resiliência. Esse sentimento moral profundo de que existem deveres que não apenas são superiores a nós como exigem o melhor de nós.

Comentários

disse…
Bom dia. Perdoe-me o abuso, mas poderia dar uma vista de olhos aqui?http://omeuproprioolhar.blogspot.com/. Verificará como o filme é importante para quem gagueja. Como eu.

Obrigado

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