Chama-se liberdade
Público 2011-02-28 João Carlos Espada
Sou contra a tirania, qualquer que seja a sua fonte, de um, de alguns, ou da maioria reunida em colectivoPosso ser acusado de conflito de interesses. Em 1998, em Nova Deli, fui co-fundador do World Movement for Democracy, que ainda hoje existe, com sede em Washington. Dez anos mais tarde, em Haia, voltei a ser co-fundador da European Partnership for Democracy, que tem sede em Bruxelas. No ano passado, recebi com surpresa uma Medalha de Gratidão, atribuída pelo European Solidarity Center, com sede em Gdansk, pelo apoio que terei promovido ao Solidarnosc polaco, na década de 1980.
Por outras palavras, a minha posição é demasiado simples e cortante: sou contra a tirania, qualquer que seja a sua fonte, de um, de alguns, ou da maioria reunida em colectivo. E sou a favor da democracia liberal, em qualquer parte do planeta, qualquer que seja a cor da pele, a religião, ou outras particularidades da comunidade em questão. Logo, sou a favor da democracia também no mundo árabe.
Isto não significa, no entanto, que eu possa, ou sequer queira, garantir que os actuais movimentos populares no mundo árabe vão conduzir à democracia. Ninguém pode saber. Mas isto significa que é muito claro o que o Ocidente deve fazer (e, lamento ter de o dizer, já devia ter feito há muito tempo) no Médio Oriente: condenar as tiranias, incluindo as potenciais novas tiranias em preparação; e exercer com vigor a sua influência para viabilizar transições ordeiras e pacíficas para regimes constitucionais pluralistas - vulgo democracias liberais - na região.
Isto significa deixar muito claro que o Ocidente não deve pactuar com tentativas de manipulação autoritária dos movimentos populares actualmente em curso no mundo árabe. E que deve apoiar activamente lideranças locais que se identifiquem com os princípios do governo representativo limitado pela lei.
Foi isso que fizeram Ronald Reagan, João Paulo II e Margaret Thatcher na década de 1980, quando condenaram a tirania comunista - como muito bem explicou o meu amigo John O"Sullivan no excelente livro O Presidente, o Papa e a Primeira-Ministra (Aletheia, 2007). Foi isso que fez Winston Churchill desde 1917 até à sua morte, em 1965: condenou o comunismo soviético nascente, depois o nazismo, e de novo o comunismo, quando este já estava consolidado e fazia descer uma "cortina de ferro" sobre a Europa central e oriental. E o mesmo fez Edmund Burke na segunda metade do século XVIII. Condenou a violação britânica dos direitos dos católicos irlandeses, dos direitos dos súbditos indianos e dos direitos dos colonos americanos. Finalmente, denunciou a violação dos direitos dos franceses pelo autoritarismo, alegadamente progressista, da Revolução Francesa.
Não vejo porque não podemos fazer exactamente o mesmo no mundo árabe. Significa isto que queremos impor aos muçulmanos o modo de vida ocidental? De maneira nenhuma. Significa apenas que não reconhecemos o direito de alguns muçulmanos violarem os direitos humanos dos seus semelhantes.
É esta uma visão exclusiva, ou exclusivista, do Ocidente? Não vejo porquê. É uma visão acessível a qualquer pessoa, independentemente da sua "raça", religião, ou outra característica particular. Milhões de "não ocidentais" emigram anualmente para o Ocidente em busca da liberdade e do seu fruto, a prosperidade. Apesar disso, o Ocidente não os obriga a abandonar a sua religião, nem os seus costumes peculiares, a menos que impliquem coerção intencional sobre terceiros.
Uma coisa é certa: o Ocidente não deve, nem pode, abandonar a defesa da liberdade, apenas porque algumas pessoas preferem impor a tirania. É assim, foi assim, e continuará a ser assim, desde a velha Atenas de Péricles e da Grande Geração, o berço marítimo da sociedade aberta, há 2500 anos. Eles deixaram-nos uma herança nobre que ainda perdura: chama-se liberdade.
Director do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa; titular da cátedra European Parliament/Bronislaw Geremek in European Civilization no Colégio da Europa, Campus de Natolin, Varsóvia
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