A eleição do voto inútil

Público 2011-02-17 Pedro Lomba

Continua o fiasco à volta dos resultados das eleições presidenciais. Eu pensava que, apesar de termos andado a descer em quase tudo o que define uma democracia decente, ao menos as eleições iam funcionando bem por cá. Quer dizer: os cidadãos eram livres de exercer o seu direito de voto e escolhiam fazê-lo ou não. Se votassem, o sentido do seu voto seria adequadamente contabilizado. No fundo, podíamos esperar por rigor nos procedimentos, uma administração eleitoral fidedigna e resultados finais sem discrepâncias ou contestação.

Nas últimas eleições presidenciais perdi essa fé. E já houve tempos em que acreditei menos em bruxas do que agora. Começou no episódio do cartão único. Deu no que deu. Explicaram-se os ministros Rui Pereira e Silva Pereira. Contradisseram-se - e ninguém é responsável por nada. Ou melhor, o intocável Rui Pereira, em vez de assumir responsabilidade pelo facto de milhares de eleitores terem sido impedidos de votar, resolveu transferir a responsabilidade política para os que lhe estão subordinados e pelos quais é - claro está - responsável. Se a hierarquia é, como ainda penso que seja, um princípio geral da administração interna, a responsabilidade pertence-lhe a ele e só ele. Mas em Portugal é assim: demitem-se os de baixo, prosseguem os de cima.

Em segundo lugar estão as dúvidas nada negligenciáveis sobre os valores da abstenção; um facto de enorme relevância política nestas eleições. Os jornais já deram nota sobre a circunstância de, em 2011, o número de eleitores inscritos ter disparado para mais de cerca de 600 mil eleitores. Os dados do INE não traduzem fielmente a população real. O número de eleitores-mistério é insondável. Desde 2008 foram acrescentados cerca de 600 mil eleitores. Como é que estas coisas acontecem, ninguém percebe.

Infelizmente, o quadro não acaba aqui. Foi publicado anteontem o mapa dos resultados finais das eleições presidenciais. Desde logo, os resultados diferem inaceitavelmente dos resultados transmitidos pela Direcção-Geral da Administração Eleitoral e pelo Instituto das Tecnologias de Informação na Justiça na noite de 23 de Janeiro, facto que já levou o PCP a solicitar a comparência do presidente da Comissão Nacional de Eleições e do director-geral no Parlamento.

Mais ainda: soube-se também que o mapa oficial dos resultados das eleições só foi aprovado com dois votos a favor em seis e com o voto de qualidade do presidente da CNE (obteve dois votos contra e duas abstenções). Um dos que votaram contra, José Vítor Cavaco, o presidente da CNE, apontou erros no apuramento geral dos resultados: "Na contabilidade final de cerca de 120 mil eleitores e cerca de 60 mil votos no distrito de Setúbal", enquanto no distrito de Viseu "são contabilizados mais 40 mil eleitores e mais cerca de 20 mil votos" (PÚBLICO, 15 de Fevereiro). Para o director-geral Jorge Miguéis, há 52 mil eleitores de Almada cujos votos não foram contabilizados. Numa frase: estivemos perto de não ter resultados oficiais das presidenciais, o que seria um facto inédito e grave em mais de 30 anos de eleições democráticas.

Pode ser da minha memória, mas não me lembro de nenhumas outras eleições (presidenciais ou outras) em que falhas e desvios como estes tivessem acontecido. Esta sucessão de trapalhadas só não criou um verdadeiro problema político porque Cavaco Silva ganhou as eleições com larga vantagem. De outra forma, seria a guerra civil. Há algum jornalista que pergunte e investigue como é que isto foi possível?

Foram umas eleições originais. Chamemos-lhes as eleições do "voto inútil". Uns não puderam votar. Outros até votaram mas não contou. E ninguém percebe porquê. Jurista

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