Netos do povo, filhos de cidadãos, nós somos os contribuintes

Público 2011-02-17 Helena Matos
O fisco não tem limites. Criámos um monstro que mais cedo ou mais tarde teremos de enfrentar - um fisco omnipotente

Durante boa parte do século XX o povo viu as polícias políticas entrarem-lhe em casa. Depois, com a democracia, os cidadãos acreditaram que tal só podia acontecer em circunstâncias muito especiais. Os contribuintes sabem que isso e muito mais poderá acontecer desde que a ordem emane do fisco.
Perante o desaparecimento de alguém, as polícias consideram que não podem entrar na sua residência. Mas o fisco descobre que a pessoa desaparecida tinha uma pequena dívida fiscal. Aí não há quaisquer impedimentos: o fisco avança, penhora a casa e vende-a por um valor 200 vezes superior à dívida que motivara a penhora.
Em nome da defesa da privacidade, organismos públicos impedem as empresas de divulgar listas de devedores e as autarquias de instalar câmaras de videovigilância. Já para o fisco não existe problema algum: o Ministério das Finanças e a Segurança Social publicam listas de devedores e esperam assim combater a evasão fiscal.
O fisco tem sempre razão. Primeiro paga-se. Depois contesta-se. Pouco a pouco vão-se interiorizando tiques característicos dos autoritarismos: acredita-se que quem contesta é especialmente vigiado e pululam histórias sobre os truques de quem tudo pode. Esta semana foi a telenovela do site para a entrega das declarações do IVA que teria estado em baixo. Para manutenção, segundo os responsáveis das Finanças. Para cobrar multas, segundo aqueles que acham que a data para colocar o site em baixo não foi escolhida por acaso.
Em nome da necessidade de mais verbas para sustentar o Estado Social, a máquina fiscal tem sido dotada de cada vez de mais poderes para sacar dinheiro mesmo àqueles que já não vão beneficiar desse Estado dito social como é o caso dos jovens a recibos verdes no novo Código Contributivo.
Ao contrário do povo de outrora, os contribuintes da actualidade não se revoltam. Afinal os contribuintes são netos do povo e filhos dos cidadãos e acham que a lei os protege. A lei protegia-os de facto de muito mas não de um Estado que se transformou numa máquina ávida de dinheiro. E disposta a tudo para o conseguir. Essa passagem do Estado que se imaginou grande distribuidor e que quis ser família, artista, empresário e que de tanto querer ser o que não pode acabou a não fazer nada do que deve, transformou o Estado numa caricatura de si mesmo: no Estado grande arrecadador não há povo nem cidadãos. Apenas contribuintes.
O contribuinte é desprovido de ideologia e tem no número de identificação fiscal o principal elo entre si e o seu país.
O contribuinte não acredita na Justiça, confunde Negócios Estrangeiros com negócios no estrangeiro e acredita que a selecção de futebol cumpre o lugar outrora reservado às Forças Armadas.
O contribuinte tem duas tabelas para aferir os conceitos de bem e de mal, de verdade e de mentira, de liberdade e de coacção. Uma dessas tabelas é a fiscal. E na prática é a única que conta, pois a outra é vulgarmente designada pelas expressões mais características do léxico contribuinte: o "também pode ser" ou "eu não me meto nisso".
O contribuinte não tem medo das polícias que aliás cada vez mais funcionam apenas no sentido burocrático do termo - abrir processo; tomar nota da ocorrência; registar no sistema; fechar processo; tomar nota da ocorrência; registar no sistema e assim sucessivamente - para evitarem ser confrontadas com eventuais responsabilidades da acção.
O contribuinte sabe que pode mentir nos tribunais e aos médicos a quem pede baixas, reformas e atestados. E também aos professores e aos pais. Pode mentir sempre. Só não pode mentir ao fisco. A verdade e a mentira tornaram-se no resultado obtido no cálculo do IRS. Nos restantes assuntos são apenas uma questão de pontos de vista.
O contribuinte é absolutamente responsável pelas suas dívidas mas não pelos seus actos. Se matar, agredir, violar... será sempre alegado. Terá sempre uma desculpa: era pobre e abandonado, era rico e mimado, a família não era carinhosa, o pai já agredia a mãe, a família é disfuncional, etc... Para o fisco não há alegados, nem disfunções e muito menos a pobreza é desculpa. Para o fisco há crimes que, ao contrário dos outros crimes, ninguém contesta: quem rouba uma televisão é o alegado autor de um provável furto sem qualquer relevância social. Já quem arranja uma televisão e não passa factura é um criminoso que deve ser denunciado prontamente e punido.
O contribuinte é aquele que vive num tempo em que a mão dura, autoritária e muitas vezes prosélita do Estado lhe chega pelas Finanças. São os empresários que contestam o Governo e que acabam a ser objecto de especial interesse das inspecções de Finanças. São as multas incomportáveis, como aquelas que estão a ser cobradas em Espanha aos donos dos restaurantes que se recusam a acatar a actual Lei do Tabaco daquele país, lei essa que é de tal modo enlouquecida que para lá de condenar à falência inúmeros estabelecimentos já interfere no conteúdo das peças teatrais, algumas delas, como Hair, com características de época que obrigam a que se fume em cena. Ou seja, aquilo que os cidadãos rejeitaram como censura - alterar argumentos teatrais - impõe agora as multas das inspecções como inevitabilidade. E quem não pagar a multa, não tem licença, se não tem licença o sistema não aceita a senha e sem senha não há password e volta tudo ao princípio.
O contribuinte, convém não esquecê-lo, esforça-se acima de tudo por não arranjar chatices. Contestar politicamente tinha prestígio. Era um frente-a-frente entre quem contestava e quem era contestado. Já ter impostos ou multas em falta é uma abominação. Ainda por cima uma abominação impessoal que confronta o faltoso com o sistema. Por isso o fisco não tem limites. Criámos um monstro que mais cedo ou mais tarde teremos de enfrentar - um fisco omnipotente - e gerámos uns seres profundamente perturbantes: os contribuintes. Ensaísta

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